quarta-feira, 5 de julho de 2017

Usuários não, DEPENDENTES.


Por Cezar Martins
A foto é velha, o salário mínimo é outro, mas a situação é a mesma: precária, cruel e de desvalorização do empregado. Vou então deixar meus 20 centavos aqui sobre a greve dos motoristas e cobradores de ônibus na Região Metropolitana do Recife, porque a gente se envolve nessa luta por uma mobilidade menos desigual, mais democrática, e mesmo a bicicleta sendo meu foco, por toda a sua potencialidade represada pela falta de políticas públicas - isso é assunto pra outro momento -, reconheço o sistema de transporte público como peça fundamental dessa democratização da mobilidade.

Já acho estranho uma porrada de gente que não usa ônibus, nem mesmo esporadicamente, descendo o sarrafo nos motoristas e cobradores, porque isso maltrata e complica a vida do trabalhador que quer chegar no seu trabalho. Incluo nessa lista de revoltados uma boa parte da grande mídia, do âncora ao dono da emissora, que não têm a menor ideia do que é um VEM e de que os créditos são comidos pelo Grande Recife após 180 dias. Com raras exceções, todos os envolvidos pitaqueiros sobre essa questão - jornalistas, juízes, governador, empresários - não sabem nada sobre a dureza da vida de quem usa ônibus ou trabalha dentro deles. A greve causa transtornos? Causa. Mas é preciso reconhecer em que situação estamos nos dias normais para entender porque nos dias de greve a situação é tão desesperadora.

Essa conexão direta de causa e efeito "Motoristas e Cobradores em Greve são culpados pela via crucis dos trabalhadores para chegarem em seus locais de trabalho durante a greve" precisa ser reavaliada. Isso é propagado pela mídia, pela Urbana - sindicato dos empresários das empresas de ônibus -, pelo Consórcio Grande Recife e por todos que não fazem a menor questão de mostrar o lado dos trabalhadores do transporte rodoviário urbano.

Pra quebrar essa conexão direta, chamo atenção para o modo como nossa mobilidade é gerida no dia a dia. Quem gere o sistema não acredita nele. Já ouvi diretamente de gestor municipal de mobilidade e já soube de pensamento semelhante de gestores do Grande Recife, frases no sentido de que ônibus é coisa de pobre. Primeiramente, a forma como isso é dito, confirma o entendimento das gestões de mobilidade municipal e estadual, e do empresariado, de que por ser coisa de pobre, ônibus não deve ter prioridade. Basta ver que entra e sai gestão, mudam-se as caras, mas a Av. Agamenon, a Av. Norte, e várias das perimetrais e arteriais principais da cidade, onde passa a massa de trabalhadores que são transportados diariamente nos ônibus, seguem sem faixa exclusiva de ônibus. Tudo espera uma tal de viabilidade técnica que, a grosso modo, se traduz em "se a gente colocar uma faixa exclusiva de ônibus nessa rua, vai piorar para quem tá de carro?". Isso não é viabilidade técnica, é viabilidade política, e depende somente da coragem de se enfrentar um erro histórico de priorização do automóvel, que até agora só mudou no discurso. Veja, nenhum desses - gestores públicos municipais e estaduais e empresários de empresas de ônibus -, em todos os outros dias do ano sem greve, pensaram em resolver o problema do ônibus, nem mesmo com as faixas exclusivas nas vias principais da cidade, onde o bicho pega de verdade, mas no dia da greve a sua revolta é com os motoristas e cobradores? Óbvio que essa inércia política não é um problema exclusivo dos ônibus. Pra fazer ciclovia, alargar calçada, ou mesmo diminuir o tempo de espera de um semáforo de pedestres, a pergunta é sempre a mesma: vai atrapalhar a circulação de automóveis? Se trata claramente de uma questão de luta por espaço entre classes, e para se evitar o confronto com os atuais donos do espaço público, seguimos na ilusão de que dá pra melhorar um pouco todo resto sem piorar para o automóvel. Fazer isso num sistema viário estressado e absurdamente ocupado é IMPOSSÍVEL.

Porém, estarmos todos parados no trânsito no dia a dia, ou parados na parada de ônibus em dia de greve, não é exatamente a totalidade do problema. Boa parte do nosso problema consiste no fato de que não temos opções, logo, estamos escravizados aos modais que nos levam pra lá e pra cá diariamente. O maior escravizado, infelizmente, é quem DEPENDE do sistema de transporte público, principalmente o usuário de ônibus. Sou um usuário de ônibus esporádico e tenho minhas soluções de classe média - ônibus opcional, ônibus comum fora de horário de pico, uber e táxi quando de ônibus for uma porcaria -, mas boa parte da população é completamente dependente do transporte público. O sistema de transporte público, senhores, ele realmente escraviza. Mas não faz isso sozinho. A cidade vai se construindo de forma completamente desregulada. Por exemplo, tem imóvel vazio no centro da cidade, mas tem gente morando em Paulista e trabalhando no centro da cidade. Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa. Isso não é exceção, e uma pessoa dessas que mora a 20km do trabalho acaba achando uma maravilha ter um ônibus pra ir e voltar, quando poderia estar indo a pé se houvesse alguma regulação para estimular o uso de imóveis desocupados no centro como moradia. Mas a dependência não vem somente da distância. Ela vem, como já disse, pela falta de opções. A maior prova disso é a quantidade de gente que está no modal errado, ou seja, desaconselhado para o seu trajeto. Cada um tem seus padrões de conforto, de gastos com mobilidade, de tempo disponível para se locomover, mas a estrutura atual não nos faz escolher a melhor opção, e isso se revela em dias sem greve. Quem é dependente do ônibus acaba ficando travado, em buscas de alternativas viáveis que não estão disponíveis. Dou uns exemplos abaixo, mas não há de forma alguma patrulhamento sobre as escolhas individuais dos modais. Cada um que tenha sua consciência de como sua escolha impacta a coletividade, e consciência de suas possibilidades. A meu ver, o poder público estimula, permite ou torna as pessoas dependentes das escolhas erradas, como quando por exemplo escolhe gastar 580 milhões com uma rodovia sobre o mangue, quando poderia estar investindo em todas as outras formas de modais variadas que o vultoso recurso permitiria. Vejamos os problemas diários, corriqueiros, resultados da dependência modal:
- tem gente indo de carro pra viagens a menos de 6km, deveria estar indo de ônibus, de bicicleta ou mesmo a pé.
- tem gente indo de bicicleta pra distâncias de 10km ou mais, pra fugir do preço do ônibus.
- tem gente indo de ônibus para distâncias pequenas porquê a estrutura para o pedestre é uma porcaria ou de bicicleta não tem estrutura cicloviária.
- tem gente usando ônibus para distâncias gigantes, pagando duas passagens, ou passeando entre terminais tenebrosos pra economizar na passagem, mas que poderia estar fazendo essas viagens em transporte sobre trilhos, seja metrô, trem ou VLT; ou pelo menos com integração temporal - bilhete único -, pra não ter que se lascar nos terminais-currais.
- tem gente gastando quase metade do salário no carro pra fugir do ônibus.
- tem gente indo de moto pra tudo que é canto porquê o engarrafamento os empurra pra isso, quando poderiam estar usando outros modais.
Ou seja, tem muita gente sendo empurrada a escolher as piores opções para o seu trajeto. São piores opções individuais e para a cidade. De forma alguma estou querendo idealizar um Recife, como está construído, sem ônibus e com todo mundo usando as outras opções. O Recife e região metropolitana precisam dos ônibus. Mas certamente, a falta de opções, num cenário com menos de 30% dos ônibus circulando durante a greve, se traduz em paradas lotadas, ônibus lotados, desconforto, insegurança, ineficiência. Se pelo menos boa parte das pessoas tivessem outras opções, o impacto da greve na vida da outra parte de usuários que realmente precisaria do ônibus e somente dele seria bem menos dolorosa. O efeito da greve na vida dos usuários seria menor e o resultado desejado pelos empregados - diminuir o lucro dos empregadores para alcançar os objetivos da paralização, tendo assim força na negociação salarial -, seria alcançado.

No caso dos ônibus ainda, além da questão estrutural, motoristas e cobradores, que trabalham horas num ambiente completamente inóspito, estão pedindo algo muito claro, a gente vê a demanda deles. No outro pólo da questão, temos as empresas de ônibus, fornecendo um serviço público sem transparência. Não sabemos quanto ganham ou quanto gastam, pois a caixa preta das empresas de ônibus permanece lacrada. Amigos mais inteirados da situação, me corrijam, mas nem financeiramente Governo do Estado e Prefeitura estimulam o uso do ônibus na RMR. Há algumas gratuidades específicas, como para estudantes de escola pública do Recife, porém a passagem inteira, a meia de estudante e a meia de idoso são todas pagas pelo usuário. Ou seja, a inteira é calculada já se pagando os descontos dessas outras meias tarifas. Nenhum ente público paga 1 centavo para estimular o uso do ônibus em detrimento do automóvel e da moto, por exemplo.

Então, nesta greve, cogite ter um pouco de solidariedade com motoristas e cobradores, que estão jogados no meio desse campo de batalha, ganhando pouco, em péssimas condições de trabalho e, lembre-se, você poderia estar usando outro modal se tivesse opções. Quem te tirou estas opções não foi nem o motorista nem o cobrador.