quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Mobilidade pré-paga: um sistema que não funciona sozinho

Está na moda bater no automóvel. Especialistas, urbanistas, cicloativistas, pedestres, até políticos e gestores que não fazem nada pra tirar espaço do automóvel perceberam como é in bater no automóvel, mesmo que seja somente no discurso.

Não faltam textos sobre segurança no trânsito, redução de velocidade, impunidade, necessidade de fiscalização, redesenho da cidade, compartilhamento de vias, etc, e isso está TODOS OS DIAS na mídia. Algum amigo seu ciclochato com certeza publicou hoje algum post sobre o fechamento das ruas de Paris para os carros, a favor das ciclovias de São Paulo, reclamando da prefeitura de outra cidade que não faz nada, ou algo sobre o ex-prefeito de Bogotá (Enrique Peñalosa) falando que estacionamento não é um problema público, ou foto de carro estacionado na calçada... aaaaahhhhhh... essa já cansou, não é? Pois bem, tem argumento jurídico, técnico, tem argumento de tudo que é jeito e muita gente que tem carro não experimenta outros modais de jeito nenhum. Por que?

Ok, o carro é confortável, tem ar condicionado, você vai sozinho sem ser incomodado por ninguém, a não ser um ou outro ciclista que aparece na sua frente. É muito cômodo, já que você sai a maioria das vezes da porta de casa até a porta do trabalho. É praticamente sua segunda casa. Mas não é só isso. Mobilidade Pré-Paga. O ônibus e o metrô você paga quando usa, ou no máximo quando carrega o bilhete eletrônico. Pedestre? Paga quase nada além de umas colheres a mais de feijão ou um gasto um
A realidade da mobilidade pré-paga: espaço limitado para cada vez mais usuários
pouco maior do sapato. O ciclista vai nessa linha também, ele paga a bicicleta antes - ou mesmo nem paga usando as de aluguel -, mas o custo é consideravelmente menor que o de um automóvel. Do custo do carro, não tem como você escapar. Mesmo que você parcele, vários dos componentes do custo como valor de entrada, IPVA, licenciamento, seguro, estão lá, ou estarão mensalmente na sua lista de dívidas a pagar. Por isso se torna bastante difícil convencer uma pessoa que tem um carro na garagem a utilizar outro modal. Claro, a escolha de que modal utilizar passa por uma análise de vantagens e desvantagens de todas as variáveis que citei acima, mas está lá, na cabeça do motorista, a informação "já está tudo pago", "trabalhei muito na vida pra poder andar de carro, paguei por isso", apesar de não estar  tudo pago já, pois os custos do uso como desgastes das peças, estacionamento e combustível são pagos normalmente durante o uso diário. Então, como dizer pra alguém que já tem um carro que táxi é mais barato para percursos diários abaixo de 17km, se ele já pagou pelo carro? Como dizer para algúem que tem um plano pré-pago caro que ele deve deixar seus créditos na garagem e fazer um pós-pago?
Existem todos os motivos na escolha do modal que você já leu em vários posts deste e de outros blogs como custo, tempo, conforto, status, segurança, mas também não é só isso. Existe uma variável no fator custo que vai além do quanto se paga: é QUANDO se paga. E nesse quesito especificamente, o automóvel é um modal que se encontra na categoria

Isso tudo é tão verdade que quem tem um carro e começa a pedalar, e pedalar cada vez mais, o faz porque alguma vantagem preponderante da bicicleta, normalmente o tempo, começou a fazer pressão na balança contra esse fator custo pré-pago. O novo usuário da bicicleta começa a se perguntar se deve ou não vender o carro, mas só o faz quando consegue calcular que realmente tem como se virar com todos os outros modais de forma mais barata e não tão mais complicada do que com o carro. Começa a ficar sem sentido ter uma modal pré-pago na garagem pra não usar, enquanto você está usando cada vez mais outros modais pós pagos mais baratos. Essa pressão pelo que você já pagou é grande, e normalmente a decisão de vender o carro pra não comprar outro e partir para a mobilidade pós paga passa por um período de análise das variáveis, cálculos. Se consulta outros amigos que já tinham feito a mudança, ouve-se tudo, mas ainda com uma certa desconfiança. A ficha só cai mesmo quando você vende o carro e o dinheiro entra na conta. Depois outros terão a mesma dificuldade e irãote fazer várias perguntas, por algumas ou várias semanas, até tomarem a mesma decisão.

Pra facilitar o entendimento desse conceito de mobilidade pré-paga, vamos comparar com um pré-pago e pós pago de telefonia/internet, claro que com algumas adaptações. Se você considerar o fator preço, e pensar que você tem um pré-pago de 30 mil reais ou mais na garagem, por quê você usaria um pós pago de 150 reais no mês? Você já pagou os 30 mil, qualquer 3 reais que você pagar a mais para ir de ônibus não faz sentido. A única coisa que te compeliria a fazer isso é se o pré-pago parar de funcionar a contento, que é o que vem acontecendo com as grandes cidades, lotadas de usuários do
Mobilidade pré-paga: aguardando o download
sistema pré-pago. Somente com o colapso desse sistema a mobilidade urbana começou a ser discutida fora dos círculos de especialistas. Se o pré-pago funciona meia boca (os dados engarrafam, mas ainda assim chegam), você segue escravizado ao que já pagou pelo plano. Às vezes você reclama, vem o provedor do serviço (o prefeito ou o governador) e aumenta a capacidade de tráfego de dados (alarga a via, coloca um viaduto pra diminuir o congestionamento), e você sente que melhorou um pouco, mas não param de aparecer novos usuários de pré-pago, já que o pós pago não é bom. Todos querem trafegar por aquela via de maior capacidade, evitar sinais, como várias lebres gordas, milhões delas tentando correr juntas, uma impossibilidade completa, enquanto a tartaruga vai passando entre as lebres com sua mobilidade pós paga (bicicleta ou ônibus na faixa exclusiva), mas você insiste em ser uma lebre, você já pagou caro por esse privilégio.

Outra característica importante da mobilidade pós paga é a multiplicidade de opções que você tem, ao contrário da pré-paga, essa que você tem na garagem. Quem tá nos planos pós pagos usa a opção que lhe convém para cada caso: bicicleta, ônibus, trem, metrô, caminhar, ou mesmo paga um pouco mais e subloca o pré-pago de alguém se necessário (Táxi, Uber ou serviços de aluguel de automóvel), o que sai bem mais barato do que pagar dezenas de milhares de reais para se escravizar no pré-pago. Esse é um trunfo da mobilidade pós paga que a pré-paga nunca vai ter. É uma vantagem sem comparação para as pessoas que optaram por esse tipo de mobilidade, mas acaba sendo uma vantagem para a cidade também, pois essas pessoas vão se adaptar às variações do funcionamento de cada modal diariamente. Choveu, não quer pedalar na chuva apesar das soluções existentes? Vai de ônibus ou táxi. Greve de ônibus, horário de pico, busão lotado? Tem ciclovia, pega uma bicicleta de aluguel ou a sua empoeirada da garagem e vai. Metrô quebrou? Há todas essas outras opções. É nesse ponto que se perde qualquer discurso que queira minimizar a importância de um modal pós pago em detrimento de outro. "Tem que investir primeiro nos ônibus" ou "não se deve fazer ciclovia antes de se corrigir as calçadas" são geralmente discursos manipuladores que objetivam colocar um modal pós pago contra o outro, o que não tem o menor sentido, ou são discursos realmente inocentes de quem não tem uma visão sistêmica da mobilidade pós paga. É necessário investir em todos os pós pagos, pois há pessoas atualmente no pré-pago que têm maior propensão a se adaptarem a pós pagos diferentes, em situações diferentes. As opções têm que existir todas ao mesmo tempo, e se completam. Essa independência de um modal específico é fundamental para o bom funcionamento do sistema pós pago de mobilidade.
Times Square em Nova Iorque: alterada de pré-pago para pós pago. Redução do engarrafamento na cidade.
Mas ok, você pode achar tudo isso uma grande idiotice. Você quer continuar pagando uma grana massa pra ter o privilégio de ter o pré-pago. É um direito seu, uma liberdade conquistada.  Tudo bem, a mobilidade pré-paga não precisa acabar, ela pode continuar existindo por um bom tempo, ninguém está querendo forçar as pessoas a mudarem para o pós pago. Apesar de ela ser muito mais cara que as opções pós pagas, as pessoas insistem em continuar nela porquê a mobilidade pós paga, mesmo sendo mais barata e tendo capacidade de atender muito mais gente, não satisfaz a todos. A questão é que a largura de banda do pré-pago, o espaço para circulação de dados (ou de automóveis) é limitado, não tem muito mais o que inventar.  Já imaginou todo mundo com plano de internet pré-pago de alta velocidade baixando ao mesmo tempo filmes de altíssima resolução? O resultado: ninguém consegue baixar o filme. Mas se você diminui a velocidade de todos os pré-pagos (nas Marginais), ou dá um pouco da largura de banda para o pós pago (faixas exclusivas de ônibus, ciclovias, calçadas), e com isso dá uma melhorada nas condições para os pós pagos entrarem nas redes sociais, checarem e-mail, enviarem texto por whatsapp, eles vão gastar seu tempo fazendo essas outras coisas que demandam menos a internet (a cidade) do que ver filme de altíssima resolução (andar de carro) o tempo inteiro, e então vai melhorar pra todo mundo. A gente precisa justamente dar condições das pessoas mudarem para o pós pago para experimentarem estes outros usos. dar vantagens para que as pessoas mudem de plano, e isso fará certamente sobrar mais espaço para o pré-pago automóvel. Não há cidade no mundo que tenha conseguido melhorar a circulação de dados (pessoas) no pré-pago sem estimular as pessoas a mudarem para o pós pago (todo o resto). Toda vez que um motorista invade uma faixa exclusiva de ônibus, estaciona na ciclovia, dá um fino no ciclista, estaciona na calçada, ou reclama de melhorias para o pós pago, ele está convidando os usuários de pós pago a voltarem para o pré-pago. De vez em quando surge o discurso em defesa do maravilhoso metrô, que é a solução dos sonhos dos pré-pagos. Eles chegam a dizer que deixariam de usar seus planos pré-pagos para usarem o pós pago metrô. Mas na real, o principal motivo de defesa do metrô é o fato de ser um sistema pós pago que não tira um pedaço da largura de banda do pré-pago. É caro, demora a ser feito - vide metrô de São Paulo, a cidade mais rica do país - e nunca vai conseguir atender todos os usos que os pós pagos precisam. Várias cidades grandes têm metrôs gigantescos e estão investindo em outras soluções pós pagas, pois sabem que o metrô não resolve tudo.

Então, meu amigo, a solução pra teu plano privilegiado, cheio de confortos e facilidades, voltar a funcionar, é fazer com que os outros planos funcionem melhor, e pra fazer isso, muitas vezes é necessário doar um pequeno pedaço do espaço destinado ao pré-pago, já que não há como se criar novos espaços sempre. Afinal, você sabe que o grande problema do teu plano é excesso de usuários, tanto que de madrugada, com vários usuários de pré-pago dormindo, ele funciona perfeitamente e com sobra (igual a maioria das prestadoras de acesso à internet hehehe). Se o pré-pago te oferece um conforto que você já pagou e não quer abrir mão, ou o pós pago não é suficientemente atraente para você mudar de plano, isso não é uma realidade somente pra você, mas pra todo mundo que está no pré-pago, em graus diferentes de adaptabilidade à mobilidade pós paga. E se uma medida que melhorou o serviço pós pago está te incomodando, lembra que ela vai puxar alguns usuários pra lá, comemore! Afinal, se você começar a reclamar e tudo do lado de lá voltar a piorar, pode ter certeza, esse usuário que anteriormente tinha trocado de plano vai voltar pro pré-pago, pra dividir espaço contigo, e não tem acelerador (de internet) que dê jeito, vai ficar todo mundo parado olhando pra barra vermelha do Youtube andando lentamente, demorando duas horas pra carregar um curtametragem de terror na qualidade máxima.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Ben Affleck atropela e mata Jennifer Garner!


dirigindo.jpg
Desde esta quarta, não se fala em outra coisa além da suposta colisão entre Gisele Bündchen e Tom Brady. De acordo com a maior parte da grande mídia, o atropelamento teria ocorrido por culpa de Jennifer Garner, que juntamente com a babá Christine Ouzonian, furou um semáforo na frente do motorista e marido Ben Affleck.

Não contente em ter pedalado no meio da pista com sua bicicleta diante de Ben Affleck enquanto este dirigia inocentemente seu automóvel em julho, a babá se jogou então na frente do automóvel de Tom Brady, enquanto Gisele atravessava a via, o que teria resultado na colisão com sua SUV que vinha sendo tranquilamente conduzida a 70km/h.

O que todos esses veículos - de comunicação - parecem ter esquecido é que Ben Affleck e Tom Brady são MOTORISTAS HABILITADOS, devidamente conhecedores das normas de trânsito. Por isso o Cicloação resolveu fazer o seu próprio título:


“Ben Affleck atropela e mata Jennifer Garner”


Até quando os ciclistas sempre serão vistos como ardilosos e os motoristas como perfeitos inocentes?

A narrativa descrita diariamente nos jornais é quase sempre a mesma: o motorista tem um comportamento exemplar, como nos belos comerciais de automóveis. De repente, passa um pedestre ou um ciclista na sua frente, que o impede de seguir o seu caminho natural, seduzindo o motorista a atropelá-lo.

A culpa é sempre do ciclista, porque “o trânsito e os motoristas são assim mesmo”, a rua foi feita pra eles. E ainda sobra para o prefeito, culpado por estimular pedestres e  ciclistas a se jogarem na rua e  consequentemente na frente dos carros.

O motorista não é responsabilizado pela colisão, como se não tivesse o poder de evitá-la. Até quando?!

Nem está claro, ainda, se Gisele e Tom Brady colidiram de fato. A Page Six revelou, inclusive, que vários pedestres atravessaram a rua enquanto Brady dirigia no ápice de sua inocência. Nenhum foi atingido, o que dilui as certezas sobre a existência de uma colisão.

O que dá para ter certeza é que o jornalismo é carrocrata, sempre defensor do motorista, e precisa melhorar.

-------------------------------------------------
Há vários textos na web comparando a insegurança que os ciclistas vivem em relação à uma sociedade do automóvel com o mundo machista que as mulheres vivem. Percebemos a clareza dessa situação quando verificamos que nas cidades brasileiras, construídas para o automóvel e com o machismo presente nas ruas, o percentual de mulheres é de cerca de 50%, mas o percentual de mulheres pedalando ainda é baixo, menos de 10% onde não há estrutura cicloviária e segurança. Nas ruas, elas são pressionadas não só pela carrocracia, mas pelo machismo presente nas ameaças, nos “elogios” machistas, no medo da violação do seu próprio corpo.

Resolvemos então usar essa comparação entre ser ciclista e ser mulher, aplicando esta comparação nesse curto e ótimo texto do Brasil Post sobre a excelente postagem do Think Olga parodiando o senso comum de que a babá foi culpada pela separação.

Nesse mundo machista e carrocrata, com forte relação inclusive entre o machismo e a carrocracia, a bicicleta é mais um instrumento de empoderamento da mulher. E comemoramos cada mulher que encontramos no caminho pedalando. A cidade é delas, e elas têm um poder enorme para transformar a cidade para melhor.