sexta-feira, 25 de julho de 2014

10 perguntas que você vai ouvir quando vender o seu carro

Sonho de criança. Ainda bem que a gente cresce e evolui.
Desde pirralho, sonhamos com a possibilidade de ter um carro e conquistar nossa independência, nossa capacidade de ir e vir pra onde quisermos, quando quisermos. É a liberdade da maioridade, alcançada ao se completar 18 anos. Existe um roteiro padrão para o filme que é a nossa vida, que vários de nós seguimos obedientemente, com poucas alterações: ir pra Disney - me desculpem, eu sei que forcei, mas foi só pela piada -, passar no vestibular, se formar, ter um carro, arrumar um emprego, casar, ter filhos, quem sabe netos, e morrer. Toda vez que você resolve rasurar esse roteiro, o senso comum acha que você enlouqueceu, que quer apenas aparecer, ou que é um excêntrico. Então irão pipocar perguntas de todos os lados em cima de você por causa desse seu comportamento fora da curva. Se deseja riscar ou pular alguma dessas etapas, ou mesmo trocar a ordem delas, se prepare para ouvir.

Casar e não ter filhos? Ter filhos sem casar? Não fazer vestibular? Arrumar emprego decidindo não se formar? Casar sem ter um carro? Ter filhos sem ter um carro??? Como pode?
Há respostas pra tudo nessa vida. Mas meu irmão... como pode a pessoa viver sem carro? Nessa as pessoas simplesmente não acreditam e não entendem. E tem gente que faz uma pergunta hoje, você responde, e parece que não entra na cabeça, semana que vem pergunta de novo "vai comprar quando seu próximo carro?". Me lembro de um dos interessados no meu carro, meu saudoso Fox 1.6, que eu disse na garagem pra ele que ia ficar sem carro e ele me perguntou "por quanto tempo?". Disse que não sabia e que não pretendia comprar outro, e depois de dois minutos de prosa ele perguntou "vai comprar um carro maior?". Percebam como ter um carro é algo tão ou mais importante que respirar pra muita gente, de forma que não conseguem enxergar as opções de vida sem o automóvel.

De tanto ouvir perguntas, resolvi compilar as mais comuns nessa lista, pra você mandar o link pra quem te perguntar, e assim não ter que ficar repetindo dezenas de vezes a mesma resposta. Mas claro, se você acha isso divertido, ótimo!

AS 10 PERGUNTAS QUE VOCÊ VAI OUVIR QUANDO VENDER O SEU CARRO (principalmente se for se locomover de bicicleta)

1. Vai comprar qual agora? Quando vai comprar outro?
Seus amigos não acreditam que você vai viver sem carro, apesar de 80% da população se locomover de outras formas. Aguarde, meses depois irão perguntar de novo quando você vai comprar outro carro. Eles custam a acreditar mesmo, acham que você está economizando pra comprar outro.

2. Você está com dívidas? Tá precisando de dinheiro? Tá liso? Na pindaíba?
Essa é das perguntas mais engraçadas. Ter um carro é uma necessidade tão forte, e se locomover sem ele é algo tão humilhante pra muita gente, que vendê-lo é considerado um último recurso para pagar as dívidas. Você antes vende o rim. Se ainda assim sobrarem dívidas, aí você vende o carro. Conheço algumas pessoas que venderam o carro pra se locomover de bicicleta. Homens, mulheres, mais jovens, mais velhos, de classes sociais diferentes. Todos têm gastado mais dinheiro com viagens, com bicicleta, com diversão em geral, e afirmam ainda sobrar um bom dinheiro por mês pra investir em previdência privada ou em algum projeto do futuro. Alguns sádicos venderam o carro e além de engordar a poupança para próximas etapas da vida - casar, ter filhos, netos, envelhecer -, compram ações da Petrobrás, torcendo pro governo parar de mimar os motoristas e aumentar o preço da gasolina.

3. Como você vai fazer feira? Como vai ao supermercado?
As opções existem mundo afora. E começarão a aparecer
nas cidades brasileiras à medida que elas forem se adaptando.
Isso realmente seria um problema, não fosse a resposta à pergunta nº 2. Com uma economia, dependendo do modelo do veículo vendido, de cerca e R$1.200,00 por mês (seguro, IPVA, combustível, estacionamento, depreciação, etc), dá pra você fazer compras naquele mercado de gente rica perto de casa, a pé ou de bicicleta. Se a família for grande e você morar numa cidade grande, terá certamente ao seu alcance um desses grandes mercados de compras no atacado. Vai de ônibus, e volta com as compras de táxi, uma vez no mês. E o resto compra de vez em quando no tal mercado de gente rica. Ou come mais vezes fora de casa, que ainda assim vai sair mais barato do que esses 1200 reais - no mínimo! - economizados, e assim vai precisar comprar menos coisas pra levar pra casa.

4. E se passar mal, se precisar ir ao hospital?
Amigo, se você passar mal e estiver em casa, em condições de dirigir, não tá tão mal assim, pega um táxi e vai pro hospital. Não vai precisar perder tempo pra estacionar no hospital nem se arriscar em passar muito mal enquanto dirige. Dos hospitais que eu me lembro no Recife, todos têm estacionamento lotado, ou não têm, ou é do outro lado da rua, ou longe da emergência. Pega o táxi e pára na porta. Se estiver na trabalho e passar mal, vai até o estacionamento pegar o carro? Conseguiu estacionar na porta do trabalho? E vai dirigindo mesmo sabendo que pode piorar a qualquer momento? Não minta! Em qualquer situação o táxi geralmente ganha ou alguém conhecido vai te levar. Quando o táxi não ganha, perde por pouco. E pra terminar tirando onda... quem só vive de carro pra lá e pra cá tem mais problemas do coração, de obesidade, estresse. Vai passar mal mais vezes do que quem se livrou do engarrafamento. Onde já se viu planejar a sua forma de locomoção para todos os dias da sua vida em função de um evento difícil de acontecer nas condições já bastante difíceis de tornar um carro algo necessário pra sua vida? As pessoas realmente perderam a noção das coisas.

5. E vai fazer tudo de bicicleta agora? Como é isso?
Essa pergunta tem relação com várias outras, só que é mais genérica, e demonstra uma visão curta da mobilidade. Vendi meu carro em fevereiro de 2013 e não o troquei pela bicicleta. Troquei por todas as outras possibilidades juntas. Um automóvel é um investimento de vamos dizer, pelo menos 30 mil reais em mobilidade, além de todos os outros gastos, e isso acaba te escravizando a esse modal. Quem tem carro evita se locomover de outras formas, porque investiu muito dinheiro exclusivamente neste modal. Se você vende o carro, por vamos dizer 15 mil reais, e além disso pára de ter todos os outros gastos, esse dinheiro todo está completamente livre, seja pra você passar um tempo em casa coçando sem trabalhar, viajando com o dinheiro pra onde quiser, ou pra ser utilizado em todas as opções de mobilidade que você tem. Esse é talvez o ponto mais difícil de entendimento dos viciados em automóvel. Eles pensam que a gente largou um vício pelo outro. Ok, bicicleta é viciante. Mas meus colegas de trabalho estão enganados sobre minha rotina de deslocamento. Como eu SEMPRE vou ao trabalho de bicicleta, eles acham que eu não uso os outros modais. A realidade é um pouco diferente.
Quando meu destino é próximo de casa, vou a pé. Se for um pouco mais longe, de bicicleta. Talvez de ônibus, dependendo do engarrafamento - se estiver engarrafado, é bicicleta, claro! - ou se estiver chovendo e eu não estiver afim de me proteger da chuva com capa. Ou de táxi dependendo da ocasião, da distância, da preguiça e da pressa. E pra muita gente, onde está escrito ônibus, lê-se transporte coletivo, pois têm metrô trem ou outra opção no seu caminho, o que torna tudo ainda mais fácil.


6. E se chover?
Especificamente sobre a bicicleta, existe essa lenda urbana de que ciclista é de açúcar, de que se chover é impossível pedalar. Como já disse no item anterior, tem capa pra isso. Consigo chegar bem seco no trabalho. Além disso, tenho duas mudas de roupa dentro de uma gaveta da minha mesa, para caso seja pego de surpresa no caminho. Mas se chover só na volta... aí dançou. HAHAHA só rindo mesmo que quem anda de bicicleta vai ficar de frescura com chuva na volta pra casa. Na volta a chuva é pra lavar a alma. Chega em casa, coloca a roupa na máquina, toma banho e vai fazer um café, enquanto o colega de trabalho ainda está no engarrafamento. Repense seus hábitos (pra não dizer "repense seus mimimis").
Roupas especiais? Capacete? Mochila?
Pedalar é pra ser simples como caminhar.

7. E o suor?
Vivemos numa sociedade higienizada, onde tudo tem que ser limpo como mármore encerado, inclusive você. É opção sua decidir se encara essa idiotice de frente, ou se ainda se incomoda com os possíveis olhares e preconceitos, ou mesmo se se sente melhor tomando um banho quando chegar no trabalho. É bastante comum, entre os que conseguiram se adaptar a ir de bicicleta para o trabalho começar indo com roupa de ciclista ou bermuda, capacete, luvas, mochila com roupa, chegar no trabalho e ainda tomar banho. Depois com o tempo esses mesmos noobs (novatos), vão perdendo a paciência com o excesso de etapas e tarefas - pedalar foi feito pra ser algo simples - e percebem que a própria mochila colada nas costas para levar a roupa os faziam suar bem mais. Quando menos você esperar, estará indo para o trabalho de calça jeans e talvez com a camisa de botão aberta pra pegar um vento na pelugem durante o caminho. O condicionamento físico vem aos poucos, a manha de pedalar num ritmo constante sem forçar muito vem junto, e algumas soluções aprendidas na prática, como diminuir o ritmo no último quilômetro, ou parar pra tomar uma água de côco no meio do caminho, afinal, você não perde mais tempo no engarrafamento, tem tempo pra isso. O suor vai virar um detalhe na sua vida de usuário de bicicleta. Afinal, suar não é feder.
Você vai perceber a sua evolução quando começarem a te perguntar se você foi de bicicleta, pois não vão reconhecer em você sinais de como você chegou no seu destino. Acredite, isso será cada vez mais comum.

8. Mas e pra viajar pra praia? Ou pro campo?
A mesma cabeça fechada que não entendeu as respostas 2 e 3 não vai conseguir imaginar a solução para o mais simples dos problemas. Se você não tiver parentes que possuam um automóvel na sua cidade que possam te emprestar o carro num fim de semana, se não tiver carona pra ir ao seu destino, se seu companheiro ou companheira não tiver carro, se não tiver transporte pra chegar no seu destino de fim de semana, aluga um carro! Para eventos tão esporádicos assim, é prático, sai barato por ser poucos dias e tem a vantagem de no dia seguinte você se livrar desse trambolho sem ficar pagando todos os encargos inerentes à posse de um veículo.
ps: se for com carro emprestado de um parente, devolve com o tanque cheio e passa antes no lava-jato, se possível. Vai sair mais barato que o aluguel! Você agora é o parente rico da família já que economiza bastante porque não tem carro. Vai ser legal de sua parte, e seus parentes vão te encher menos a paciência porque você vendeu o carro.


9. E pra ir ao motel? De bicicleta? Tá de sacanagem!
De bicicleta no dia dos Namorados
Quem mora só não vai muito ao motel. É impressionante a quantidade de gente que mora com os pais porque não tem dinheiro pra ter um canto só seu, mas paga 500 reais por mês só da parcela do automóvel, além de todos os outros custos como IPVA, seguro, manutenção, etc. Se sua(seu) parceira(o) anda de bicicleta também, não vai ter frescura com isso e vai encarar o motel contigo. Se tem carro e não for um(a) babaca, te leva de carona. E sempre tem a opção do táxi, pros dois tomarem um goró, um espumante, uma ou duas garrafas de vinho, e voltar pra casa no banco de trás do carro, completando as carícias pós-cópula abaixo do ângulo de visão do taxista pelo retrovisor, sem medo de blitz ou de fazer uma merda no trânsito.

10. Mas velho... como você vai pegar as boyzinhas sem carro?
Como diria Fred 04 (Mundo Livre S/A), na música Tentando Entender as Mulheres:
"Todo homem deveria ter um carro
Ou senão nem precisava ter testículos"
SÓ QUE NÃO!
Colega, estamos em 2014. Achar que só tem mulher interessada no cara pelo seu dinheiro, pelo seu carro, nesse mundo plural, é velho demais! Tira esse mundo machista da cabeça e vai à luta, companheiro! Tem muita gente por aí feliz vivendo uma vida sem essa dependência (falo do carro) e que gostaria de "se divertir" contigo. Mas se você quer permanecer limitado aos estereótipos de Maria Gasolina, se esse é teu estilo, e você acha que precisa de um carro pra se dar bem na guerra, seja feliz. Ainda iria sugerir vender seu Celta com jogo de rodas e neon, e alugar um Civic pra impressionar "as mina" na balada. Mas sei que você não vai conseguir ficar sem o seu possante. Boa sorte!
ps: não comentei o sentido inverso, do macho Gasolina, porque ter carro pra se dar bem é muito associado ao machismo, ao homem que precisa prover o transporte, que tem o carro pra pegar a mulher em casa e impressionar. Sabe de nada, inocente!
Tem uma mulherada descolada por aí! Felizes sem carro!
Pra finalizar, ninguém nunca pergunta, mas tem mais uma vantagem em não ter um carro. Só me dei conta dela na minha primeira grande viagem de férias após vender meu carro. Quando você viaja de avião, de férias, e não leva a sua querida latinha com motor, como você se locomove lá no seu paraíso longe dos engarrafamentos da sua cidade, sem o seu melhor amigo? Pois deixa eu te contar um lance... você estará perdendo muito dinheiro! Melhor nem parar pra calcular. Mas é como eu disse na resposta da pergunta 5: carro é um modal no qual você aplica todo o seu dinheiro, de forma que toda vez que você não o usa pra usar outro, você está gastando duas vezes. Está gastando com o modal que está utilizando, e com o carro parado na garagem, perdendo valor, ficando velho a cada dia. E nas férias, meu amigo, não tem escolha. Se você viaja pra outra cidade por 15 dias, seu carro estará por 15 dias na garagem parado enquanto você estará gastando com táxi, ônibus, metrô, ou pior, alugando outro carro pra rodar nas férias. E se tem uma coisa que dá mais prejuízo do que um carro, é você ter um carro parado e pagar pra usar outro.

Agora me diz... quem é o louco aqui!?

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Uma palavra doce


Se procurarmos no dicionário uma definição para a palavra acidente, vamos encontrar várias definições possíveis para contextos específicos. Mas existe uma definição que funciona bem para o entendimento mais comum da palavra.


acidente
nome masculino
1.acontecimento casual ou inesperadocontingência, acaso


acidente In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-07-24].

Os usos da palavra nesse sentido mais difundido podem ser exemplificados de várias formas.

"Estava em casa, sonolento, chutei o pé da mesa por acidente e passei 5 dias com o dedão inchado.˜

"O copo estava em cima da mesa. Virei para pegar o telefone e esbarrei no copo. Foi um acidente

"Os carros pararam antes da faixa de pedestre. Não entendi o motivo, mas não enxerguei ninguém. Estava dirigindo a caminho do trabalho e segui para passar a faixa como sempre faço, quando apareceu uma criança correndo pela faixa (por isso não a vi, os carros bloquearam minha visão). Foi inevitável, uma fatalidade, um acidente."

Não, peraí... Um dedo inchado, um copo quebrado, uma criança atropelada. Estamos falando do mesmo tipo de evento? Esses fatos têm o mesmo nível de influência em nossas vidas como seres sociais que somos?

Está aí o grande erro. A tal palavra doce, essa que todo mundo gosta de repetir, acompanhada do verbo ser, renegando a um passado inevitável, inalterável um evento que pode tirar a vida das pessoas "foi um acidente", não pode estar sendo bem utilizada. Esta palavra não tem nada de doçura. Estamos falando de um amargor, de um gosto ruim presente na garganta de quem ouve isso das testemunhas, da autoridade de trânsito, até  mesmo do juiz de Direito, que o que fez seu parente perder a vida, ou o que te tornou inválido, incapacitado para uma gama de atividades, não passou de um acontecimento casual ou inesperado, contingência (oi???), acaso!? É muito difícil aceitar isso. E é espantoso como esse discurso, além de adotado pela mídia, pelas pessoas na rua, está entranhado no modus operandi das nossas políticas públicas de segurança no trânsito. Estamos, com o perdão da palavra, tão fudidos em segurança no trânsito - vou me abster de usar estatísticas óbvias de comparação com outros países - que a única campanha que foca especificamente nesse erro, correção... nesse uso criminoso da palavra acidente, é uma campanha criada e abraçada por familiares e amigos de vítimas do trânsito. Não há envolvimento de governo nenhum com a campanha.


A campanha acerta em cheio por buscar o reconhecimento das responsabilidades dos atores do trânsito, focando em seus atos voluntários, suas decisões que colocam em risco a vida de outras pessoas. E isso é justamente o que se busca com a afirmação NÃO FOI ACIDENTE! Mas afinal, por que o trânsito é tão diferente de um copo em cima de uma mesa ou de um pé de uma mesa? O trânsito, o transitar, é o ato de se locomover no ambiente urbano principalmente, onde se torna inevitável o compartilhamento do espaço, a convivência entre todos. É - ainda - impossível, por mais que o carro se aproxime bastante disso, conseguir transitar pela cidade sem interagir com as outras pessoas que estão na cidade. A quantidade de interações é tão grande que não nos damos conta, já que somos mal acostumados a fazer nosso percurso concentrados apenas nas precauções necessárias para conseguirmos concluí-lo. Essa é a visão principalmente de quem se locomove de carro. Aqui vos fala quem tem carteira de motorista e teve carro por quase 20 anos.

Isso tem que mudar. É imprescindível o reconhecimento do trânsito com todas as suas características: estruturais, comportamentais, sociais. E faz parte desse processo expurgar do nosso vocabulário, na maioria dos eventos de trânsito, a palavra acidente, para enfim reconhecermos o trânsito como um grande movimento coletivo de todos, ao mesmo tempo, e não apenas o seu movimento, com todo o resto classificado como obstáculo. Esse processo de reconhecimento está claramente longe das cabeças e dos relatórios de quem toma as decisões sobre a organização do trânsito em muitas cidades do país. Por isso não temos uma campanha institucional forte como essa do Não Foi Acidente, que lembre as pessoas das suas responsabilidades no trânsito, proporcionalmente à sua capacidade de causar dano à vida de alguém.

Nas grandes capitais, temos milhões de pessoas se locomovendo pela cidade diariamente, e considerar as mortes decorrentes do ato de ir e vir como "contingência, acaso" é temerário, é negligente, é irresponsável. O resultado está aí nas estatísticas: uma chacina de mais de 50 mil mortos anuais no país.

Nesta quarta-feira, Rita de Cássia entrou para as estatísticas. Uma senhora, se locomovendo em sua bicicleta, foi engolida pela roda do ônibus que dividia a rua com ela. Antes do resultado da perícia, vários já anunciaram: foi um acidente. O senhor Fulano é um motorista exemplar.
Então, ainda sem o resultado da perícia, todos já condenaram o acaso como culpado. Segue a vida. Vamos em frente que o trânsito tem que fluir. Acidentes acontecem. Esqueçamos essa história de 1,5m de distância que isso não vai nos livrar do acaso.

Não é bem assim. Algumas informações devem ser misturadas com o que já decidiram para o caso da senhora Rita:
- a Prefeitura do Recife não fiscaliza o cumprimento do 1,5m de distância.
- a Prefeitura do Recife não faz campanha pelo cumprimento do 1,5m de distância.
- o Consórcio Grande Recife, responsável pelas concessões públicas de linhas de ônibus não registra como "desrespeito ao ciclista" as reclamações contra motoristas de ônibus, logo não tem como dar tratamento diferenciado a este tipo de infração. Um ônibus de 6 toneladas passando a  10cm de um ciclista é registrado da mesma forma que um motorista xingando um passageiro, sob o título "falta de urbanidade".
- não há um treinamento regular dos motoristas de ônibus.
- o treinamento realizado no início de 2014 trouxe melhorias visíveis no comportamento dos motoristas, mas algumas empresas como a Borborema - envolvida nesse "acidente" com Rita de Cássia e em outro "acidente" em março deste ano, que resultou na morte de José Roberto na Ponte Paulo Guerra - negligenciaram o treinamento. Poucos motoristas da Borborema foram treinados e dificuldades foram impostas para a liberação dos motoristas para o treinamento prático, com um passeio de bicicleta.

Considerando apenas essas cinco informações apresentadas, dentre várias outras que podemos citar, podemos dizer que esse "acidente" envolvendo a Rita de Cássia poderia ter sido evitado? Porque se algo pode ser feito para se evitar um evento, mas não é feito, podemos chamar de crime, de irresponsabilidade, de incompetência, de inércia, mas nunca de acidente. Rita de Cássia merece respeito, todos merecemos. E ninguém merece morrer no trânsito.