quarta-feira, 30 de abril de 2014

Holanda: estrutura, educação, fiscalização e LEI!

Quando se pretende buscar organização em qualquer situação/setor da sociedade, não se pode tratar todos os agentes envolvidos sem considerar suas diferenças. No exemplo mais banal, numa sala de aula, o professor tem uma posição diferente dos alunos. Da mesma forma, não trata todos os alunos iguais, dando atenções especiais às dificuldades de cada um. No trânsito não pode ser diferente. Entretanto, apesar do nosso aparato legal ser razoavelmente bom, ele não é cumprido pelas próprias autoridades. Seria um avanço o simples cumprimento do CTB e da PNMU.

Holanda: 60 anos de modernização pós-guerra
e mortes no trânsito caem pela metade.
É relativamente fácil viajar para outro país e dirigir um automóvel, como se estivesse no Brasil, com o conhecimento que temos sobre as leis de trânsito de nosso país. O que muitos não sabem é que há diferenças substancias em como o ordenamento jurídico de diferentes países trata os participantes do trânsito. Se temos um exemplo a seguir é a Holanda. Por que investe nas bicicletas? NÃO! Porque a Holanda reconhece em suas leis as diferenças de potencial ofensivo, de fragilidade dos participantes do trânsito, reconhece o princípio da autoproteção que envolve o caminhar e o pedalar. Porque na Holanda, a taxa de mortalidade no trânsito é muito menor que no Brasil, porque em Amsterdam a taxa de mortalidade no trânsito é 90% menor que em Recife, e isso propicia às pessoas escolherem os seus modais segundo vários fatores: conforto, praticidade, custo, sustentabilidade. Mas um fator está garantido para TODOS OS MODAIS não só por existir estrutura e educação, mas por existir leis que o garantam: SEGURANÇA.

Para entender melhor, o excelente texto The American right-of-way do The Economist (traduzido aqui por um colaborador), periódico americano, evita os termos técnicos, mas usa exemplos práticos para explicar o que legalmente seria o funcionamento perfeito do artigo 29 do CTB - o maior protege o menor - na Holanda. E isso não é uma campanha, uma questão de educação ou de opção, é uma obrigação legal imposta ao motorista.
A prioridade no trânsito americano

Apesar do título em tom de brincadeira, a opinião de Daniel Duane no New York Times dominical, “Is It OK To Kill Cyclists?” é de uma seriedade fatal. Exatamente como o Sr. Duane escreve, motoristas nos EUA, em geral, não recebem punição alguma por atingir ou matar ciclistas, mesmo quando o acidente foi claramente culpa deles. Esta louca lacuna no sistema judiciário reflete a intolerância extrema e sistêmica de motoristas contra ciclistas, e seria muito fácil consertá-la. Tudo o que os EUA teriam que fazer seria adotar regras de trânsito como as existentes na Holanda, onde o número de ciclistas é muito maior, apesar de sua taxa de mortalidade por quilômetro pedalado ser muito menor. Para ilustrar como as regras de trânsito na Holanda diferem das americanas, temos aqui alguns casos hipotéticos holandeses a serem analisados.
  • Digamos que um caminhão esteja fazendo uma curva em alta velocidade em uma pista de quatro faixas em “The Hague”, e passa por cima de um ciclista em uma ciclofaixa. O acidente foi testemunhado por um observador muito confiável cujo testemunho seja muito provavelmente aceito em uma corte – digamos que seja o primeiro-ministro do país. Quem tem a culpa e vai ter que pagar pelos danos e/ou encarar as punições criminais? Resposta: o motorista do caminhão.
  • Mas se o mesmo acidente ocorrer em uma pista de duas faixas que não tenha ciclofaixa, ou seja, o ciclista estava andando na via? E se não houver testemunhas ou evidências em vídeo? Quem é o culpado então? Resposta: o motorista do caminhão.
  • O que aconteceria então se houvesse um sinal de trânsito para a bicicleta naquela esquina e o ciclista estava claramente avançando o sinal vermelho? Resposta: ainda o motorista do caminhão.
  • Ok, então… E se o ciclista estivesse vindo na contra-mão em uma rua de mão única, chegasse na esquina ao mesmo tempo do caminhão, e apesar do fato do sinal estar aberto para o caminhão, o ciclista ignorasse isso e corresse passando direto pelo cruzamento? Resposta: o motorista do caminhão teria que pagar ao menos 50% dos danos, a não ser que ele pudesse provar que era impossível ter visto o ciclista.
  • Tranquilo. E se um tornado vem vindo pelas ruas de alguma cidade holandesa, arrasta o caminhão e o joga na direção do ciclista, que estava avançando um sinal vermelho e andando na contra-mão em uma rua de mão-única? Resposta: o motorista do caminhão provavelmente não teria que pagar os danos do ciclista, a não ser que ele tivesse 14 anos ou menos, caso no qual o caminhoneiro teria que provar que não tinha nada que ele pudesse ter feito que poderia ter evitado o acidente.
Para resumir: na Holanda, se um veículo motorizado atingir um ciclista, assume-se sempre que a culpa é do motorista, não do ciclista. Isto é explicado neste FAQ da ANWB, a organização de turismo e de proprietários de carros holandesa, “a lei trata pedestres e ciclistas como participantes mais fracos no tráfego... O motorista do veículo motorizado é o responsável pelo acidente, a não ser que ele possa provar que foi dominado por circunstâncias além do seu controle. O motorista deve então provar que ele não teve culpa alguma, o que é extremamente difícil na prática.”

Esse sistema de regulamentação bota um fardo extra nos motoristas. Esse fardo pode ser resumido pelo seguinte: antes de virar em uma rua, você tem que verificar cuidadosamente no seu retrovisor para ver se vem algum ciclista. E ponto final. Quando você dirige na Holanda, você tem que ser mais cuidadoso do que você iria se dirigindo nos EUA. Isto leva a uma injustiça desproporcional aos motoristas? Não. Isto leva a muito menos acidentes. A ANWB diz que alguns motoristas podem pensar que este tratamento de responsabilidade dá aos ciclistas “um cheque em branco para ignorar regras. Porém um ciclista não vai avançar deliberadamente um sinal vermelho pensando: ‘Não importa, eu não vou ter que pagar pelos danos mesmo.’ É muito mais provável que ele seja influenciado pelo risco que tem de acabar em um hospital.”

É claro, o sacrifício não vem apenas de um lado. Ciclistas na Holanda aprendem a ficar nas ciclofaixas quase onipresentes do país, a não avançar sinais vermelhos, e a sinalizar antes de fazer uma curva, e eles obedecem essas regras mais metodicamente do que os americanos – parte porque se eles não fizerem isso, é provável que atrapalhem ou atinjam outros ciclistas, que lhes retribuirão com alguns xingamentos. Além disso, os sinais de trânsito e a infraestrutura das ruas são adaptadas às necessidades dos ciclistas, o que provoca uma certa inconveniência aos automóveis, apesar que não tanto quanto ter um monte de bicicletas no meio do trânsito, ignorando as regras.
Uma frase chama atenção no texto: "a não ser que ele (o motorista) pudesse provar que era impossível ter visto o ciclista". Isso demonstra que na Holanda há um custo legal ao tirar o carro da garagem. Você está colocando um veículo de pelo menos uns 800kg na rua, com o qual você pode facilmente atingir velocidades perigosas no ambiente urbano. Só por tirar o veículo da garagem, você já se torna automaticamente responsável pelo que acontecer com o seu veículo e todos os outros que estão em situação mais frágil no trânsito. O motorista tem que provar sua inocência como alguém que tem porte de arma e se atingir alguém, tem que provar que o disparo foi acidental.

Aí está a grande dificuldade de entendermos o funcionamento disso na sociedade. Não estamos acostumados a receber todo esse peso nos ombros ao conduzirmos um veículo. Em troca, ao utilizarmos uma bicicleta, pedalamos com todo o peso de nossa vida nos ombros. Mas podemos ter certeza de uma coisa. Se não fosse esse aparato legal de proteção, essa lógica de imposição de responsabilidade ao motorista, não veríamos nas ruas de Amsterdam uma cena como essa, que para nós parece uma situação lúdica de tão distante, mas sintetiza bem o destaque da Holanda no quesito segurança do trânsito.
Obs: A mãe está alguns metros atrás, com outra criança menor numa bicicleta-carrinho de bebê.



quarta-feira, 23 de abril de 2014

Para encontrar a burrice, olhe para baixo.

O trânsito não é apenas o caminho do trabalho, de casa, do shopping ou da academia. O trânsito, o ir e vir - e hoje em dia permanecer por muito tempo - na rua é aquele momento inevitável em que você tem que conviver, dividir espaço com todos os outros. A não ser que a pessoa não saia de casa pra nada ou tenha um helicóptero, ela tem que enfrentar o convívio, tem que dar a cara à tapa!

Lá nos idos dos anos 1990, quando não havia engarrafamento nas proporções que vemos hoje nas grandes capitais brasileiras, as classes média e alta não tinham que enfrentar esse problema, o convívio. Cada um entrava sozinho no seu carro e sozinho chegava no seu destino. O engarrafamento veio pra deixar todo mundo bem juntinho. Você, no seu Escort, está ali ocupando o mesmo espaço, talvez um pouco menos, que uma SUV novinha ano 2015. E ambos estão no mesmo engarrafamento de quem está no Mercedão de 50 lugares, com mais 90 pessoas. O problema é que o engarrafamento, a crise
indiscriminatória do trânsito, não chegou para todos de uma vez. O transporte público não é satisfatório há décadas, os pedestres morrem às pencas há muito tempo, e ciclista é considerado um intruso no trânsito, como sempre foi. Somente a classe média e alta que sentiu esse efeito de sapo dentro da panela de água no fogão. Explico: se você coloca um sapo dentro da panela com água fria e a água vai esquentando aos poucos, o sapo não percebe que está sendo fervido e fica lá quieto, na dele, dentro da panela (o engarrafamento), até a morte. Todos nós que dirigimos nossos carros inconsequentemente dos anos 1980, 1990 ou mesmo do início dos anos 2000 pra cá, nos negamos a perceber que a água estava fervendo. Continuamos dirigindo nossos automóveis, como se adicionar água fria na panela resolvesse o problema. Só que à medida que tem mais água quente dentro da panela, adicionar água fria já não faz mais efeito, até que a água esborra.

Recife já esborrou faz algum tempo. São mais de 500 novos carros por dia, mas os sapos ainda assim não conseguem perceber, as pessoas insistem em acreditar que há solução para o automóvel numa cidade que terá sua frota de carros dobrada em 10 anos. Falta o mínimo de lógica para se entender que NÃO É POSSÍVEL DOBRAR O ESPAÇO PARA CIRCULAÇÃO NAS RUAS EM 10 ANOS, nem em 1000 anos! "O problema é a engenharia de trânsito que é ruim na cidade", "tem que construir mais viadutos", "tem muito semáforo nas vias", "tem que alargar vias", "vou procurar caminhos alternativos". Se você já disse alguma dessas frases, e pensa assim ainda hoje, aconselho pular pra fora da panela antes que seja tarde demais. E quando falo em pular da panela, nem exijo que você largue o carro amanhã e compre uma bicicleta. Isso pode ser difícil pra alguns, seja por sua realidade de deslocamento ou pelas dificuldades impostas a si mesmo. Mas pelo menos, jogue o seu cérebro pra fora da panela. Isso seria um avanço tão grande e tão transformador, é uma medida tão forte e capaz de mudar a coletividade, que você não tem  noção do poder dessa sua decisão.

Sim. Com esse texto, a única coisa que pretendemos é convidar você, que está dentro no seu carro, a ler um outro ponto de vista sobre a lógica do trânsito. Começamos com uma tese, e te desafiamos a discordar desta tese, a partir dos argumentos expostos logo a seguir. Muitos deles se baseiam  no problema citado mais acima: aprender a conviver no trânsito. Sejamos diretos por agora:

Tese
Todo motorista que desrespeita o ciclista e o pedestre, que é contra estrutura cicloviária, faixas exclusivas de ônibus ou estrutura protetiva para o pedestre, é burro.

Argumentos
Certamente há vários argumentos, mas vamos citar alguns. Tenha sempre em mente que esses argumentos não são para que você largue o carro pela bicicleta, mas para convidá-lo a apoiar a melhoria das condições para a bicicleta como transporte, assim como também dos outros modais, de forma a melhorar o seu deslocamento no seu carro.
1. Se você acha que tem muito carro nas ruas, lembro que no Brasil os deslocamentos feitos de carro ficam abaixo de 30%, algo em torno de 25%. Isso significa que os outros 75% estão se deslocando sem carros. Qualquer atitude de desestímulo aos outros modais, seja viadutos, aumento de velocidade, retirada de sinal de pedestres, encolhimento de praças ou de calçadas, vai seduzir essas pessoas a migrar para o carro, pois esse ganhou mais espaço, piorando rapidamente qualquer melhora que tenha sido obtida no trânsito com essas medidas. Vai aumentar o engarrafamento. Mesmo considerando que nem todas as pessoas têm poder aquisitivo para comprar um carro, se considerarmos só 20% do total, seria um aumento nos deslocamentos por carro de 25% para 45%, o que é bem próximo de dobrar o número de carros nas ruas.
Seguindo essa mesma lógica em outras situações do cotidiano...
2. Se você não respeita o 1,5m de distância do ciclista ou passa muito rápido perto de um ciclista, ao piorar as condições de trânsito dele, você o está estimulando a largar a bicicleta e migrar para o carro ou para o ônibus, que irá ocupar bem mais espaço no engarrafamento. Lembro que na pior situação do trânsito, o engarrafamento com mínima movimentação dos veículos, o ciclista não fica no engarrafamento, logo não o produz.
3. Se você avança o carro num pedestre que está atravessando a rua, seja na faixa ou fora dela, ou mesmo na faixa, mas com semáforo aberto para os carros, você o está estimulando a migrar para o carro ou para o ônibus. Mesmo para o ônibus, serão mais ônibus na rua e menos gente na calçada. E pedestre ocupa menos espaço que o ônibus, que ocupa menos espaço que o carro (pessoa/m2).
4. Quanto mais ciclistas ou pedestres na rua, menos veículos automotores podem causar grandes danos pessoais ou patrimoniais para você ou seu veículo. Em termos gerais, cidades com mais carros possuem mais mortes no trânsito e mais colisões. Em Recife, nos números de 2011, das 602 mortes, quase a totalidade envolveu carro, moto ou ônibus. Menos carros, menos mortes, menor prejuízo material também. É assim em todos os países que desestimulam o uso do carro. E neles tem muita gente como você, que não vai largar o carro nunca.
5. As cidades no mundo com menor taxa de engarrafamento investiram na bicicleta e no pedestrianismo.
6. Quanto menos motoristas nas ruas, mais fácil encontrar vagas para estacionamento. Se pretendem tirar 100 vagas de automóvel perto do seu trabalho para a construção de uma ciclofaixa ou ciclovia, basta um número de 100 motoristas que troquem o carro pela bicicleta - número fácilmente atingível, muito menor que os 1 milhão de motoristas que passam pelo Recife diartiamente - para que a medida compense para quem continua de carro. Serão 100 carros a menos para disputar as vagas, além da vantagem de organizar as bicicletas somente num lado da via. Se desejam tirar uma vaga de automóvel para colocar um paraciclo com 10 vagas para bicicleta, apóie!!! Bastam dois ex-motoristas usarem-no para estacionar suas bicicletas que compensará a vaga perdida e ainda ganhará mais uma, já que são dois motoristas a menos disputando a vaga.
7. Um ciclista se locomove de 15 a 25km/h de média. É bem mais que a média de Recifede carro nos horários de pico para a grande maioria dos percursos. Zona Norte-Recife Antigo não passa de 12km/h. Se você protegê-lo durante o trajeto, não ameaçá-lo, estará contribuindo para o aumento de ciclistas, diminuição de carros e ônibus, e consequente aumento de espaço disponível. Assim poderá desenvolver velocidades médias maiores no seu percurso, mesmo sem atingir grandes velocidades máximas. Já pensou se 1/4 dos carros da Rui Barbosa desse lugar à mesma quantidade de bicicletas? Quanto espaço novo surgiria para a locomoção de automóvel? Basta olhar para o seu lado enquanto dirige e ver quanto espaço você está ocupando ao estar só dentro dele. É espaço para 5 pessoas mais uma mala cheia de objetos. Isso para diariamente ir ao trabalho sozinho.

Os argumentos são relativamente repetitivos e interligados. Podemos resumi-los em um só: quanto mais você colaborar para o deslocamento de todos os outros modais que ocupam menos espaço que o carro se deslocando e estacionados (inclusive o ônibus, claro!), mais espaço sobra para você dirigir seu carro. Há exemplos práticos e teoria pra isso. É apenas outra forma de ver o argumento "quanto menos espaço para o carro, menos engarrafamento". Parece sem lógica, se você lê a frase pensando somente no carro.
Mas se você considera que nesse espaço retirado dos carros vai caber mais pedestres, ciclistas ou ônibus, começa a fazer sentido. Seja inteligente. É somente uma questão de parar de olhar pra baixo, para o próprio umbigo, e olhar um pouco ao redor.

Se você se interessa um pouco por Física ou quer simplesmente saber um pouco mais sobre o assunto, aconselhamos ler esse texto. Menos vias, menos engarrafamento.

Tenha um bom dia. Nos vemos no trânsito!

terça-feira, 15 de abril de 2014

Geraldo Júlio dá um drible em todos nós

Em 2012, durante a campanha, o ainda candidato Gerald Júlio, do PSB, surpreendeu a todos prometendo 70km de ciclovias e ciclofaixas, estrutura segregada que traz o mínimo de segurança para o ciclista recifense. Antes de mostrar o truque apresentado aos ciclistas hoje, vamos lembrar alguns conceitos básicos:

Ciclovia
- Ciclovia: estrutura totalmente segregada, normalmente com uma pequena mureta, indicada para vias com 60km/h no perímetro urbano.








Ciclofaixa
- Ciclofaixa: estrutura cicloviária pintada no chão. Difere da ciclovia pela falta de mureta. É indicada para vias com velocidade de 40km/h.

Circular ou estacionar em ciclovia ou ciclofaixa (arts. 181 e 193) é infração segundo o CTB e dá multa. O tratamento legal desses dois tipos de estrutura é semelhante.



Ciclorrota
- Ciclorrotas: vias que continuam sendo compartilhadas por todos os veículos, onde existem pictogramas de bicicletas desenhados no asfalto, indicando a existência de bicicletas  na via. Portanto, funciona muito mais como uma indicação, um aviso do que como uma delimitaçõa de espaço. Vejam que a ciclorrota se assemelha muito mais de uma via sem nenhuma divisão de espaço. Ainda depende da vontade do motorista respeitar ou não o ciclista que está na ciclorrota. As ciclorrotas são válidas como complemento, num planejamento macro de estrutura cicloviária, sendo indicações de vias de 30km/h onde há grande circulação de ciclistas. Entretanto as vias nessa velocidade não demandam ciclofaixa ou ciclovia. São essencialmente uma estrutura cicloviária educadora, muito mais do que protetora.

- Zona 30: delimitação de uma área como inteiramente de circulação a no máximo 30km/h, com barreiras principalmente físicas, mas também com fiscalização, transformando a área para melhor circulação de pedestres e veículos não motorizados.

Na página da campanha do atual prefeito, temos na área de mobilidade, o seguinte trecho:
Ciclovias e ciclofaixas
O candidato Geraldo Julio também se compromete a criar ciclovias e ciclofaixas, além de recuperar e implantar calçadas, respeitando os padrões modernos de acessibilidade. Será criado ainda um amplo programa de sinalização para pedestres e veículos (sinalização horizontal e vertical e semáforos).
A promessa dos 70kms do prefeito se baseava, desde o início, em CICLOVIAS e CICLOFAIXAS. Nesta segunda-feira, 14 de abril de 2014, a Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano municipal apresentou 5 das 12 rotas previstas para este ano. Para surpresa dos presentes, boa parte dos percursos apresentados se tratava de ciclorrota. E presenciou-se também uma inovação mais assustadora ainda. Apresentou-se uma zona 30 no Recife Antigo, somando todas as ruas pertencentes à mesma como se fossem estrutura cicloviária. E assim o prefeito vai preenchendo sua meta de 70 quilômetros. Não se surpreendam se metade dos 70kms foram de vias totalmente compartilhada com carros, apenas com placas de velocidade e tinta no chão indicando a existência de bicicletas, o que não é garantia de nada para o ciclista. Dá-se início a uma manobra vergonhosa da prefeitura para atingir uma meta que não é grande para uma cidade do porte de Recife. É drible da vaca mais chapéu mais elástico, tudo junto.

Senhor prefeito, projeto sério seria fazer ciclovias e ciclofaixas, e ligá-las com ciclorrotas, pelas ruas contempladas com estrutura cicloviária segundo o Plano Diretor Cicloviário da Cidade, auxiliando o ciclista a chegar nos 70km de ciclovias e ciclofaixas prometidos em campanha. Sério seria apresentar fora da meta de campanha, como medida educativa para o motorista, que é o que ela é.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Para os maus entendedores: ruas auto explicativas


É notório que a educação para o trânsito em Recife está longe de ser exemplar, assim como a fiscalização. Ambas funcionam como medidas de longo e curto prazo, respectivamente, para se transformar o nosso trânsito, permitindo uma mobilidade mais segura disponível pra todos. A educação dura anos para trazer resultados, e é a medida que mais se enraiza no comportamento das pessoas, ela pode fazer a diferença duradoura que precisamos. A fiscalização tira das pessoas a sensação de impunidade, inibindo o cometimento de infrações pelo receio da punição, mas é impossível ter um agente de trânsito em cada esquina 24 horas por dia. Que fazer então?

Foco na estrutura!
Reforçar visualização de faixa de pedestres
com semáforo para pedestres. Será mesmo necessário?
No mês passado a CTTU lançou um novo modelo de faixa de pedestre no Recife. Conforme podemos ler na matéria da Folha de Pernambuco, tem várias vantagens, como por exemplo maior visibilidade pelos motoristas, além de ter uma durabilidade quatro vezes maior.


Digno. Ótimo ver o mínimo de preocupação com o pedestre, o verdadeiro e merecido dono da rua. Mas nos bastidores dessa decisão, há um equívoco na forma como se pretende gerir o trânsito no Recife. Temos cerca de 700.000 carros no município, além de outras centenas de milhares dos municípios da região metropolitana, que circulam na capital. Certamente pelo menos 1 milhão de veículos circulam diariamente em Recife. O foco do controle do trânsito apenas em sinalização horizontal - pintura - e vertical - placas indicativas - remete à presunção de morarmos em uma cidade onde há obediência de todos os participantes do trânsito, principalmente esse milhão de motoristas, a estas indicações. Fosse assim, não teríamos mais de 600 mortes por ano no trânsito, ameaçando ultrapassar a taxa de homicídios.


A sinalização com tinta e placas é essencial, mas se torna um erro ao ser utilizada como única estratégia de controle de comportamento no trânsito, por se basear na confiança num comportamento exemplar de quem dirige um veículo de 1 tonelada na rua. Uma placa de 40km/h na Estrada do Encanamento, ou de 60km/h no Cais José Estelita, funciona a contento? Qual a taxa de obediência dessas sinalizações? Na faixa de pedestre no fim da Rui Barbosa, qual o percentual de motoristas que param para a travessia do pedestre? Essas medidas se tornam obsoletas quando pensadas isoladamente, a ponto de surgir um novo termo para um urbanismo moderno, mais eficiente, mais impositivo, menos "brodagem". São inúmeras estruturas usadas e difundidas no mundo inteiro, que tiram do motorista a chance de desobedecer a lei de trânsito. Estamos falando das self explaining streets, ou ruas auto explicativas. São transformações pequenas que podem levar a cidade a um patamar mais humano e tranquilo de mobilidade, medidas que induzem ao traffic calming.

Sorocaba: 71 faixas de pedestre em nível
Sobre faixa de pedestres ainda, um ótimo exemplo de traffic calming é a travessia de pedestres em nível. Permite a travessia de cadeirantes e idosos, por exemplo, sem a necessidade de descerem e subirem batentes ou rampas. Com essa estrutura, o motorista que se adapta ao nível da calçada ao cruzar uma faixa. Isso já induz o motorista a reduzir a velocidade, por estar claramente passando por uma estrutura que não foi feita pra ele.

Porém, as ideias para ruas auto explicativas vão mais longe do que faixas de pedestre. Diminuição da largura das vias fazem os motoristas naturalmente diminuírem a velocidade, além de encurtar a distância da travessia para o pedestre. O "martelo", estrutura muito utilizada na Europa, faz isso. E já está sendo utilizado em São Paulo também. Alargando apenas as esquinas, se torna uma opção barata comparada aos benefícios trazidos à população:
- diminuição da velocidade de circulação dos veículos.
- impossibilita o estacionamento - que já é proibido - na esquina, onde ocorrem a maioria das travessias de pedestre.
- força os motoristas a diminuírem a velocidade na conversão, devido à necessidade de maior precisão e maior angulação na curva.
- diminui a distância da travessia ao aproximas as esquinas, consequentemente diminuindo o tempo que o pedestre passa na rua, e assim diminuindo o risco na travessia.

Na foto abaixo temos um quarteirão residencial no bairro de Charpennes, em Lyon, França. Estacionamento nos dois lados da rua, com o martelo nas quatro esquinas, que é esse prolongamento da calçada em direção a rua. Com essa decisão, o poder público utiliza uma solução bem mais inteligente, barata e segura do que colocar um agente de trânsito em cada esquina da cidade. Asdurabformação da cidade vai ocorrendo aos poucos, criando-se uma estrutura que organiza o trânsito, evitando ao máximo a interferência do estado com recursos humanos, sujeita a mais falhas que a estrutura física. 
Martelo nas esquinas de Lyon. Mesma solução está sendo aplicada em algumas esquinas de São Paulo.
É assim com a estrutura cicloviária. Ruas com nenhuma estrutura dependem unicamente da educação para o trânsito seguro de ciclistas. A ciclorrota, simples pintura de bicicletas no chão, sem delimitação de espaço, já dá ao motorista o recado de que o ciclista tem o direito de andar na via, mesmo sem ciclofaixa ou ciclovia, o que o motorista já deveria saber. A ciclofaixa, pintura delimitando o espaço do ciclista, dá maior ênfase ao recado, destacando uma parte da via de todo o resto. Ainda depende um pouco mais da educação do que a ciclovia, que segrega completamente o ciclista. Em qualquer desses casos, não se tira a necessidade de fiscalização, mas se reduz bastante.. Em 2013 se espalhou nas redes sociais a imagem de um carro circulando na ciclovia de Boa Viagem. Só com punição se evita um desrespeito desse tamanho (consultamos no Detran e não há multas registradas para o veículo em 2013). Mas é certamente muito mais raro ver um carro na ciclovia do que na ciclofaixa, ou tirando fino de um ciclista.

Enquanto as ruas auto explicativas não chegam por aqui, os motoristas continuam alegando que é preciso primeiro educar. Não é seguindo essa premissa que o órgão de trânsito vai resolver os problemas atuais. A combinação fiscalização mais estrutura inteligente, seja com ruas auto explicativas ou outras ideais de traffic calming serve como um alento, um remédio para melhorar a situação atual. Não podemos esperar a educação surtir efeito daqui a 20, 30 anos.

Mas... E na Av. Conde da Boa Vista, a faixa de pedestre vermelha e branca vai resolver? Afinal, se tem um semáforo de pedestres no cruzamento com a rua Sete de Setembro, qual a finalidade de se destacar a faixa com mais uma cor? Se analisou o motivo dos atropelamentos no cruzamento? Consideremos duas opções principais:
1. Os veículos estão furando o sinal vermelho: não é a faixa branca e vermelha que fará os motoristas deixarem de furar um sinal. Duvido muito que seja esse o problema.
Orientador de trânsito NÃO é medida de traffic calming
2. Os pedestres estão atravessando no sinal verde para os veículos: pedestre nem ninguém gosta de arriscar a vida à toa. Um pedestre só fura um semáforo porque coloca na balança conforto e segurança. Tem uma falsa sensação de segurança ao furar o semáforo, e uma bastante dura realidade de um semáforo que demora para abrir para pedestres. Certamente este semáforo é um dos mais desrespeitados por pedestres no Recife. A solução não demanda tinta, nem orientadores de trânsito, nem um agente da CTTU de forma permanente na esquina.Basta mudar a configuração do semáforo, colocando um tempo digno, menor, de espera pro pedestre. Isso vai fazer o fator conforto pesar mais na balança, e o pedestre vai esperar o semáforo abrir pra ele. É CERTO que a quantidade de atropelamentos vai diminuir instantaneamente.

Quando teremos afinal uma gestão focada em traffic calming? Anúncio de  implantação de zonas 30 foi feito semana passada. A Prefeitura tem só que lembrar que não basta pintar 30km/h no chão. A ideia demanda alteração da configuração das ruas, com redução da largura das faixas de veículos, por exemplo, coisa que a CTTU nunca fez, e tem se mostrado irredutível no seu posicionamento em várias reuniões onde esse assunto entrou em pauta. Vide Estrada do Arraial e Estrada do Encanamento. Ambas têm placas de 40km/h espalhadas por toda a via, mas possuem faixas exageradamente largas de tráfego misto, possibilitando ao motorista a escolha de respeitar ou não a velocidade nos horários de trânsito livre. Perdeu-se uma grande oportunidade de se fazer ruas que não permitem o desenvolvimento de altas velocidades, seja com alargamento da calçada, com arborização, ou mesmo aumentando a largura da ciclofaixa, dando mais conforto ao ciclista no uso bidirecional que ele já faz da mesma.