quarta-feira, 12 de novembro de 2014

A Física, a estatística e a lógica

Economista americano traz nova tese para solução dos problemas econômicos e de pobreza dos países emergentes. Segundo John A. Void, o foco do cálculo do PIB per capita e da quantidade de pessoas em pobreza extrema sempre esteve no lado errado da equação. Void sugere que o PIB per capita pode subir pelo crescimento da economia do país, mas que em anos de recessão, o governo proceda a um sorteio aleatório de uma porcentagem determinada da população para ser destinada ao extermínio. No caso do Brasil, por exemplo, para uma população x, exterminando-se apenas 5%, teríamos uma evolução do PIB per capita de aproximadamente 5,26%. No caso da extrema pobreza, ou seja, do percentual de pessoas que passam fome, o extermínio poderia ser direcionado a parte dos famintos. Se o país está com 4% de famintos, exterminando-se a metade, restariam 2%, ou talvez menos, já que os alimentos destinados aos outros famintos serviriam agora a estes 2% restantes.


É óbvio que, apesar de termos certeza de que há quem pense desta forma, este blog jamais divulgaria uma notícia desta como real. John A. Void não existe, inventamos ele, mas poderia facilmente ser o criador do modelo de trânsito atual. Para que o trânsito funcione da forma mais próxima possível do que as pessoas querem, aceita-se um descarte, um extermínio, que no Brasil é de mais de 20 pessoas a cada 100.000 habitantes no ano. Bota na conta aí mais de 40 mil mortes no ano, com números imprecisos, o que demonstra o descaso com a situação. Há chances de termos perto de 60 mil mortes no ano. É um preço que todos consideram aceitável para que o resto da máquina gire. Temos que nos locomover de um lugar ao outro no menor tempo possível e a única forma de isso acontecer é em velocidades acima de 40km/h. Se você pensa assim, como John A. Void pensaria, há várias cidades no mundo que estão provando que você está errado. Não é coincidência: as cidades que têm trabalhado para fornecer aos seus habitantes um trânsito mais seguro são as que têm conseguido maiores velocidades médias de todos, o que certamente é muito melhor para a eficiência da cidade do que as velocidades máximas de alguns.

Einstein energizando
Mas afinal, por que toda vez que se quer discutir segurança no trânsito, a principal sugestão dada é a redução de velocidades? É importante dizer que os cicloativistas, os defensores da democratização da mobilidade, não inventaram a Física, nem mesmo Isaac Newton, muito menos Albert Einstein. A Física sempre esteve por aí, funcionando, mas esses seres geniais, os físicos, conseguiram decifrá-la, descrevê-la, quantificá-la. E muito antes dos cicloativistas, gestores do trânsito de cidade grandes e médias do mundo inteiro têm acreditado mais na ciência como fonte de informação para as decisões sobre o trânsito. Instintivamente todos sabemos que um automóvel a 60km/h atropelando um pedestre ou ciclista, tem um potencial devastador. Mas e um ciclista atropelando um pedestre? Um pedestre atropelando um pedestre? Qual o potencial de dano de cada um desses eventos de trânsito, além do achismo? Óbvio que o ideal é ninguém atropelar ninguém, mas se queremos tornar nossas ruas seguras, quais são nossos alvos? Que comportamento, que situação torna o transitar algo inseguro?
 
Já publicamos algumas vezes esse gráfico acima, mas queremos fazê-lo hoje com uma nova abordagem. Vamos relacionar essas velocidades à quantidade de energia que um veículo transfere ao outro numa colisão. Neste artigo, viemos teorizar sobre os efeitos dos choques no trânsito, de forma a definir relativamente uns aos outros, quais modais são potencialmente mais perigosos no trânsito. Partimos de algumas ideias/afirmações iniciais:
  • Utilizaremos a fórmula da Energia, para considerar a potencial energia a ser transferida de um corpo para o outro em choque.
  • Vamos ignorar transportes sobre trilhos, pois estes têm um nível de previsibilidade muito alto, cabendo ao condutor apenas o cuidado com a velocidade, e aos outros agentes do trânsito é fácil determinar qual percurso os trens ou bondes farão. Faremos cálculos para pedestre, bicicleta, moto, automóvel e ônibus comum.
  • Consideramos para o pedestre e a bicicleta suas velocidades usuais. Para os modais motorizados, as velocidades padrões da maioria das cidades brasileiras.
  • Parte da energia é dissipada e não totalmente transferida ao outro corpo no choque. A área de contato também influencia no resultado. Aceitamos prontamente outros cálculos demonstrados de quem quer que seja, caso seja mais sabido que nós em física (o que não é difícil) e que deseje contribuir. Não somos físicos e não planejamos inventar a roda da física nem da segurança do trânsito.


Se você nunca gostou de Física, não se assuste: não entraremos em muitos detalhes, não demonstraremos fórmulas nem cálculos. Faremos que nem receita de bolo. Temos uma fórmula e iremos aplicá-la. A explicação é teórica e baseada em simples análise matemática da fórmula da energia cinética Ec=(m.v²)/2, onde m é a massa do modal e v é a velocidade. Pela fórmula, já podemos perceber que, para a energia transferida ao outro corpo com o impacto, temos massa e velocidade como fatores, tendo a velocidade uma participação exponencial no resultado, enquanto a massa varia apenas linearmente o resultado. Ou seja, mexer na velocidade para controlar os efeitos da energia no choque altera significativamente o resultado, bem mais do que a massa.


Vamos aos exemplos que estudaremos:
  • Um pedestre caminha normalmente a 6km/h. Consideraremos um pedestre de peso médio de 70kg.
  • Um ciclista pedala em média a 18km/h. Tem os mesmos 70kg mais 14kg de uma bicicleta pesada.
  • Um motociclista de mesmo peso numa moto de 105kg a 40km/h.
  • Um motorista de mesmo peso dirige um automóvel de 900kg a 60km/h, velocidade que vários motoristas consideram o mínimo aceitável na cidade.
  • Vamos inserir no exemplo também um automóvel em Nova Iorque, que reduziu agora em 07/11/2014 os limites máximos de 40km/h na cidade.
  • Um ônibus de 10 toneladas com 40 passageiros (peso médio de 70kg), uma ocupação mediana, a 60kmh.
  • O mesmo ônibus, a 40km/h, com a mesma ocupação.


A velocidade na fórmula está em m/s (metros por segundo) e não em km/h. A massa é em quilos, e o resultado, a Energia Cinética, é em Joules (J).

Eis os resultados:

Pedestre
97,23 J
Bicicleta
1.050 J
Automóvel a 60km/h
134.722 J
Automóvel a 40km/h
59.876 J
Ônibus a 60km/h
1.777.777 J
Ônibus a 40km/h
790.123 J
Motocicleta a 40km/h
10.802 J


A quantidade de energia posta em circulação no trânsito gera potenciais situações de risco para todos nós que fazemos parte do trânsito. Pelos resultados, com cálculos baseados em exemplos reais, percebemos que os modais motorizados possuem mais energia cinética, em grandezas diferentes a ciclistas e pedestres, pronta para ser transferida para os outros agentes do trânsito de forma brusca, colocando as vidas de todos em risco. Se fizermos um novo cálculo sobre o infográfico colorido que apresentamos acima, de 30, 50 e 65km/h, sem considerar peso do veículo, temos que um veículo a 50km/h carrega consigo 2,77 vezes a energia de um veículo a 30km/h, ou seja, causaria um dano quase 3 vezes maior que um veículo a 30km/h. Se a comparação for realizada com um veículo a 65km/h, estamos falando de 4,7 vezes mais energia!

Além de aumentarem potencialmente esses números de energia cinética, as velocidades altas dos veículos diminuem consideravelmente o tempo de reação do condutor dos veículos, além de aumentar a distancia necessária para a frenagem. É exatamente de acordo com essas quantidades de energia que o CTB determina que o maior protege o menor. Apesar de usar uma linguagem simplificada de "maior" e "menor", a lógica é do dano potencial que o modal oferece aos outros ao seu redor.

Se considerarmos as quantidades de energia de um ônibus, automóvel ou moto a 40km/h, um ônibus carrega consigo muito mais energia, podendo ser um grande perigo para os outros modais, porém, pela baixa quantidade de veículos e de motoristas, se torna muito mais fácil treiná-los - no Recife e região metropolitana são menos de 10.000 motoristas de ônibus -, do que treinar os motoristas de automóveis (cerca de 1 milhão). Motoristas profissionais treinados, em menor quantidade (redução da quantidade de carros nas ruas), e andando a velocidades mais baixas, são seguramente uma fórmula de sucesso na redução das mortes no trânsito.


Ainda sobre a tabela construída, segue alguns comentários sobre os números encontrados:

  • não há quantidade relevante de casos de morte de pedestre, motorista, motociclista ou ciclista, ocasionada por um pedestre que os tenha atropelado.
  • não há quantidade relevante de casos de morte de ciclista, motorista, pedestre, ou motociclista, ocasionada por um ciclista que os tenha atropelado
  • proporcionalmente à quantidade de ônibus, temos um grande número de mortes no trânsito causadas por este modal, devido à velocidade excessiva, falta de treinamento dos motoristas, falta de organização do trânsito de forma a dar maior segurança aos modais mais leves e lentos (estruturas exclusivas para pedestres e ciclistas).

Além disso, a falta de fiscalização permite velocidades muito maiores que estas, permitindo circular na cidade veículos com velocidades com valores nada seguros, extrapolando os números da tabela acima.
Anúncio oficial da campanha de redução de velocidade em NY
Ciente desses riscos, esta semana a prefeitura de Nova Iorque reduziu em 5 milhas (8km/h) por hora a velocidade máxima em toda a cidade, após 25 dias de campanha, fazendo parte de um planejamento contínuo de humanização do trânsito, iniciado por volta de 2005, que inclui criação de espaços públicos exclusivos para pedestres, alargamento de calçadas e construção de ciclovias. Essas medidas, destinadas a estimular a mobilidade a pé e o uso da bicicleta, resultam na redução do uso do carro e da demanda por veículos pesados como ônibus, ou seja, a redução do valor total de energia circulando pela cidade. Os números de mortes no trânsito têm diminuído na cidade desde a implantação dessas medidas, e agora com a nova redução de velocidades, a tendência é cair ainda mais. A diminuição da velocidade máxima permitida de 30mph (48km/h) para 25mph (40km/h) representa uma redução da quantidade de energia por veículo, independente de seu peso, de 30%, utilizando-se a fórmula de energia cinética. Isso é prova de que a cidade adotou de vez a campanha mundial Vision Zero, que defende um trânsito com ZERO mortes.



A redução da quantidade da energia circulando numa cidade pode ser feita de várias formas integradas, mas não há dúvida que uma das formas mais garantidas de se fazer isso sem comprometer a mobilidade de muitas pessoas é investindo na mobilidade por bicicleta. A partir de
nossos cálculos grosseiros, podemos inferir que cada pessoa que sai às ruas pedalando coloca em circulação cerca de 57 vezes menos energia que alguém que sai de carro, e ainda consegue em muitos casos gastar menos tempo se deslocando. Não é a toa que em Copenhagen, cidade com mais pessoas indo de bicicleta aos seus destinos do que de carro, morrem apenas 5 pessoas por ano no trânsito, bem menos do que os cerca de 300 no Recife.

Energia por modal individual
Podemos interpretar de várias formas o descaso generalizado na capital pernambucana com a segurança das pessoas no trânsito. Falta de informação, receio de perda de capital político a curto prazo, falta de visão... uma interpretação viável é a de que ainda se permite às pessoas um consumo grande de energia para que se locomovam de carro, de forma mais eficiente (oi?) que as outras, independente dos vários resultados desse consumo: poluição, mau uso e degradação do espaço urbano, ineficiência econômica (e energética!) da cidade. Porém a insegurança das pessoas no seu percurso diário é certamente o lado mais cruel dessa decisão política da administração municipal, tanto das anteriores como da atual. Vivemos um trânsito explosivo, podemos virar alvo a qualquer momento, e não há no horizonte nenhum sinal de forças contrárias a essa nossa caminhada em direção à cova, onde chegaremos em pedaços e com caixão fechado.

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