quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O conto de fadas da intermodalidade com carro

Tá difícil entender o papel do carro no trânsito, na sociedade? Vos ofereço uma analogia bastante simplória: o carro é o rodízio de carnes. Ou pode ser de pizza ou sushi também.

Intermodalidade carro + churrasco
Você vai à melhor churrascaria da cidade e paga 80 reais por um rodízio de carnes. Então você senta à mesa, e começam a chegar as carnes. Mas em algumas ocasiões, o garçom, ao oferecer a carne, te avisa que "essa é paga por fora, amigo!". WTF! "Tá pensando que eu sou otário, é?". Você paga 80 reais all included, e o cara te vem com uma opção paga por fora pra você comer a mesma coisa!

Pronto! Se você entendeu esse absurdo de pagar por fora ao entrar num rodízio, você vai entender porque a intermodalidade com carro é uma lorota que a indústria automobilística quer nos empurrar goela abaixo. Os motivos são óbvios. Com as cidades abarrotadas de automóveis, e com a velocidade de vendas maior do que a velocidade de construção de novas vias - ÓBVIO! Ou você acha que sempre tem espaço pra alargar ruas? -, o transporte individual motorizado tem sido tratado como um vilão do trânsito, e essa vilania acaba de certa forma atingindo por tabela os motoristas. Devemos distinguir quem é o quê nessa história. O carro é realmente o vilão. Qualquer política pró automóvel tira espaço de todos os outros modais, num custo elevado de espaço para transporte de pouca gente, e muitas vezes inclusive tirando espaço de convivência, de uso da cidade e até de habitação. Temos no Recife prédios de 30 andares de apartamentos com mais 4 andares para estocagem de veículos.

Mas o motorista não é o vilão. O reprovável é o uso do automóvel diariamente, como bem essencial. A indústria automobilística  nos ensinou isso e engolimos como patinhos.

Integrar o carro ao transporte público? Já calculou?
Sobre a intermodalidade especificamente, e o exemplo do rodízio... você paga 30 mil reais, talvez 80 mil reais, 200 mil (!!!) num carro, pra ganhar um pacote de liberdade - esse benefício já era, tá preso no engarrafamento -, conforto, individualismo, ar condicionado, música e até DVD pra motorista (proibido, mas vem sendi=o fabricado), e vem o presidente da associação de fabricantes de automóveis, ANFAVEA, a associação de quem te vendeu o automóvel, e te diz que a solução é deixar o seu amado carro, com todas essas vantagens,  num estacionamento, pra pegar um ônibus ou metrô. É pagar 80 reais no rodízio, não comer a picanha e ainda pagar 10 reais por fora! Tive carro por muito tempo. Te conheço, amigo. Você NÃO vai deixar o carro num estacionamento pra pegar outro transporte. Mas a ANFAVEA finge que te conhece mais, e diz que você vai fazer o que sabemos que não vai. Leia:

Retirado do site Notícias Automotivas
Vamos fingir por alguns minutos que acreditamos na intermodalidade com automóvel, e que vamos nos dispor a deixar o carro longe, num estacionamento, e pegaremos - e também pagaremos! - um ônibus ou metrô pra descer a 1000 metros do trabalho e ainda andaremos 10 minutos até lá, em vez de ir direto de carro diretamente para o nosso destino. Vamos então partir para uma matemática básica, com conceitos de porcentagem e área.

Temos em números atuais até este mês de agosto de 2014, na Região Metropolitana do Recife, segundo o site do Detran de Pernambuco, um total de 1.211.208 veículos. Tentando ser mais justos ainda com o cálculo, vamos desconsiderar a coluna de "Outros" e as motos, que apesar de figurarem como vilãs em outras questões como segurança e poluição, ocupam pouco espaço estacionadas. Vamos excluir também os veículos de carga, pois é pouco comum alguém usar caminhão como intermodalidade. E obviamente os ônibus, que têm a função de fazer a intermodalidade. Nos sobra apenas os 718.749 automóveis. Toda essa explanação serviu pra quê? Pra nada. Pois no site da CTTU já temos a informação supostamente correta. Desses mais de 718 mil veículos, circulam pelas ruas do Recife diariamente, cerca de 620 mil veículos. Tá explicado porque quando temos greve de ônibus, ao contrário do que algumas pessoas "pensam", o trânsito não melhora sem os ônibus. Ele piora e muito, pois existe gente que deixa os outros quase 100 mil carros em casa diariamente pra usar o transporte público, ir de bicicleta ou caminhando. Durante a greve, estes se vêem forçados a usarem o carro.

Então já temos um número base: 620.000 veículos circulam diariamente pelo Recife. Se a solução deve incluir necessariamente a intermodalidade com automóvel, como diz o isento presidente da ANFAVEA - Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores -, precisamos antes definir qual a redução necessária do número de carros nas ruas, para termos um trânsito com fluidez. Existe um consenso razoavelmente generalizado de que a grande piora no trânsito ocorreu com a redução do IPI para automóveis, benefício fiscal iniciado em 2008. De 2007 para 2014, tivemos um aumento na frota de carros da Região Metropolitana de 44,12%. Vamos realmente considerar, apesar de haver controvérsias, que o trânsito na capital pernambucana era uma maravilha em 2007. Então podemos chegar a um segundo número. Para deixar o nosso trânsito azeitado, fluindo bonito que nem o BRT na Avenida Caxangá e a Via Mangue ontem, hoje e sempre, devemos diminuir em 44,12% o número de carros circulando nas ruas, ou seja, arranjar estacionamento nos terminais de metrô e ônibus da cidade para que 273.544 motoristas estacionem seus carros e sigam em outros modais. Afinal, todos eles vão se dispor a isso, não é?

A gente pode até destrinchar aqui outras questões, como pensar em como seria todos os 273.544 veículos, ou pelo menos boa parte deles, se dirigindo todos em horário de pico a pontos específicos da cidade (os tais terminais), ou mesmo refletir no que mudaria no trânsito da casa das pessoas até os terminais com essa medida sensacional proposta pela ANFAVEA.

Mas vamos nos ater aos estacionamentos. Precisamos achar lugar para estacionar 273.544 automóveis! 
Lembrando de grandes estacionamentos existentes na cidade, um que se destaca é o do Shopping Center Recife. O centro de compras tem 180.000m², sendo que mais de 120.000m² são exclusivos para estacionamento e circulação de veículos. Quase 70% da área! Então vamos colocar pelo menos uns 20% desses 273.544 carros num estacionamento do tamanho do shopping, repetir isso em 5 pontos da cidade e tá tudo resolvido. Vejamos...

No site do Shopping Recife, temos a informação de que nesses mais de 120.000m² só cabem 5800 carros. Para estocarmos todos os dias os 273.544 necessários para reduzir o volume de carros nas ruas em 44,12%, precisaríamos de 47,16 estacionamentos com a mesma área que o estacionamento do shopping. WOW!!!! E temos essa área disponível?

Capturei no Google Maps um printscreen do Shopping Recife e outro do odiado, temido, e evitado por muitos Terminal da Macaxeira, ambos na mesma escala. Agora eu peço que você veja a imagem abaixo, comparando o tamanho do shopping e do terminal, e deduza, exercite uma elucubração: é possível termos 47 terminais de integração no Recife e região metropolitana - muito mais do que temos hoje -, cada um com um estacionamento do tamanho do Shopping Recife?

O estacionamento do Shopping Recife, excluindo-se a área de lojas: 12 terminais da Macaxeira.

E se transportar a lógica para a outra solução cantada por muitos, dos 17 edifícios garagem sugeridos em 2012 pela gestão anterior e ainda considerados como opção pela gestão atual, o problema é o mesmo: falta de espaço para estocagem de um grande número de veículos. A proposta dos 17 edifícios garagem criaria cerca de 14500 vagas segundo notícias de 2013 (o edital de 2012 fala em 10.000 vagas). São 17 edifícios exclusivos para estocagem de veículos, tirando 2% de carros estacionados nas ruas, e criando 2% a mais de vagas mais seguras, cobertas, estimulando o uso do carro. DOIS POR CENTO é o aumento da frota de veículos na Região Metropolitana em 5 meses, para ser absorvido por edifícios garagem que demorariam anos para serem construídos.

Podemos terminar este artigo com uma conclusão básica, apontando para uma solução já adotada com 
sucesso em várias cidades do mundo. O único lugar onde o carro já tem vaga garantida e demanda pouco espaço é na garagem de casa. Há ainda alguma inteligência, em colocar estacionamentos em estações de trem, aeroportos ou qualquer outro transporte entre cidades, pois a demanda é muito menor do que a demanda diária por mobilidade e não há competição forte entre o carro e esses modais. É restringindo estacionamento, e não criandp vagas, que se melhora a mobilidade. Mas e a bicicleta? Onde entra nessa história? Entra que 5800 carros demandam esse espaço todo no Shopping Recife, e 5800 bicicletas ocupam 12 vezes menos espaço: todas caberiam no Terminal da Macaxeira. Você resolve o problema da intermodalidade e ainda tira 5800 carros da rua, liberando espaço nas vias para o automóvel do idoso que não consiga mais pedalar ou andar confortavelmente, para o cadeirante e para o próprio transporte público.

É tudo tão óbvio quanto a facilidade de contar a quantidade de carros e a dificuldade de contar as bicicletas nessa foto da estação de Nijmegen, em Copenhagen. Óbvio como o fato de que quem sai de carro de casa dificilmente irá fazer intermodalidade, pois concentrou todos os seus esforços e gastos num só modal. O resto... é tudo mentira!
Estação de trem de Nijmegen, Copenhagen.
Foto retirada do Instagram de Mikael Colville-Andersen.

Um comentário:

  1. Só tem um erro na foto do shopping que a antiga área da tend tudo e ao lado, são da rio ave. Mas de todo parabens!

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