quinta-feira, 24 de julho de 2014

Uma palavra doce


Se procurarmos no dicionário uma definição para a palavra acidente, vamos encontrar várias definições possíveis para contextos específicos. Mas existe uma definição que funciona bem para o entendimento mais comum da palavra.


acidente
nome masculino
1.acontecimento casual ou inesperadocontingência, acaso


acidente In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-07-24].

Os usos da palavra nesse sentido mais difundido podem ser exemplificados de várias formas.

"Estava em casa, sonolento, chutei o pé da mesa por acidente e passei 5 dias com o dedão inchado.˜

"O copo estava em cima da mesa. Virei para pegar o telefone e esbarrei no copo. Foi um acidente

"Os carros pararam antes da faixa de pedestre. Não entendi o motivo, mas não enxerguei ninguém. Estava dirigindo a caminho do trabalho e segui para passar a faixa como sempre faço, quando apareceu uma criança correndo pela faixa (por isso não a vi, os carros bloquearam minha visão). Foi inevitável, uma fatalidade, um acidente."

Não, peraí... Um dedo inchado, um copo quebrado, uma criança atropelada. Estamos falando do mesmo tipo de evento? Esses fatos têm o mesmo nível de influência em nossas vidas como seres sociais que somos?

Está aí o grande erro. A tal palavra doce, essa que todo mundo gosta de repetir, acompanhada do verbo ser, renegando a um passado inevitável, inalterável um evento que pode tirar a vida das pessoas "foi um acidente", não pode estar sendo bem utilizada. Esta palavra não tem nada de doçura. Estamos falando de um amargor, de um gosto ruim presente na garganta de quem ouve isso das testemunhas, da autoridade de trânsito, até  mesmo do juiz de Direito, que o que fez seu parente perder a vida, ou o que te tornou inválido, incapacitado para uma gama de atividades, não passou de um acontecimento casual ou inesperado, contingência (oi???), acaso!? É muito difícil aceitar isso. E é espantoso como esse discurso, além de adotado pela mídia, pelas pessoas na rua, está entranhado no modus operandi das nossas políticas públicas de segurança no trânsito. Estamos, com o perdão da palavra, tão fudidos em segurança no trânsito - vou me abster de usar estatísticas óbvias de comparação com outros países - que a única campanha que foca especificamente nesse erro, correção... nesse uso criminoso da palavra acidente, é uma campanha criada e abraçada por familiares e amigos de vítimas do trânsito. Não há envolvimento de governo nenhum com a campanha.


A campanha acerta em cheio por buscar o reconhecimento das responsabilidades dos atores do trânsito, focando em seus atos voluntários, suas decisões que colocam em risco a vida de outras pessoas. E isso é justamente o que se busca com a afirmação NÃO FOI ACIDENTE! Mas afinal, por que o trânsito é tão diferente de um copo em cima de uma mesa ou de um pé de uma mesa? O trânsito, o transitar, é o ato de se locomover no ambiente urbano principalmente, onde se torna inevitável o compartilhamento do espaço, a convivência entre todos. É - ainda - impossível, por mais que o carro se aproxime bastante disso, conseguir transitar pela cidade sem interagir com as outras pessoas que estão na cidade. A quantidade de interações é tão grande que não nos damos conta, já que somos mal acostumados a fazer nosso percurso concentrados apenas nas precauções necessárias para conseguirmos concluí-lo. Essa é a visão principalmente de quem se locomove de carro. Aqui vos fala quem tem carteira de motorista e teve carro por quase 20 anos.

Isso tem que mudar. É imprescindível o reconhecimento do trânsito com todas as suas características: estruturais, comportamentais, sociais. E faz parte desse processo expurgar do nosso vocabulário, na maioria dos eventos de trânsito, a palavra acidente, para enfim reconhecermos o trânsito como um grande movimento coletivo de todos, ao mesmo tempo, e não apenas o seu movimento, com todo o resto classificado como obstáculo. Esse processo de reconhecimento está claramente longe das cabeças e dos relatórios de quem toma as decisões sobre a organização do trânsito em muitas cidades do país. Por isso não temos uma campanha institucional forte como essa do Não Foi Acidente, que lembre as pessoas das suas responsabilidades no trânsito, proporcionalmente à sua capacidade de causar dano à vida de alguém.

Nas grandes capitais, temos milhões de pessoas se locomovendo pela cidade diariamente, e considerar as mortes decorrentes do ato de ir e vir como "contingência, acaso" é temerário, é negligente, é irresponsável. O resultado está aí nas estatísticas: uma chacina de mais de 50 mil mortos anuais no país.

Nesta quarta-feira, Rita de Cássia entrou para as estatísticas. Uma senhora, se locomovendo em sua bicicleta, foi engolida pela roda do ônibus que dividia a rua com ela. Antes do resultado da perícia, vários já anunciaram: foi um acidente. O senhor Fulano é um motorista exemplar.
Então, ainda sem o resultado da perícia, todos já condenaram o acaso como culpado. Segue a vida. Vamos em frente que o trânsito tem que fluir. Acidentes acontecem. Esqueçamos essa história de 1,5m de distância que isso não vai nos livrar do acaso.

Não é bem assim. Algumas informações devem ser misturadas com o que já decidiram para o caso da senhora Rita:
- a Prefeitura do Recife não fiscaliza o cumprimento do 1,5m de distância.
- a Prefeitura do Recife não faz campanha pelo cumprimento do 1,5m de distância.
- o Consórcio Grande Recife, responsável pelas concessões públicas de linhas de ônibus não registra como "desrespeito ao ciclista" as reclamações contra motoristas de ônibus, logo não tem como dar tratamento diferenciado a este tipo de infração. Um ônibus de 6 toneladas passando a  10cm de um ciclista é registrado da mesma forma que um motorista xingando um passageiro, sob o título "falta de urbanidade".
- não há um treinamento regular dos motoristas de ônibus.
- o treinamento realizado no início de 2014 trouxe melhorias visíveis no comportamento dos motoristas, mas algumas empresas como a Borborema - envolvida nesse "acidente" com Rita de Cássia e em outro "acidente" em março deste ano, que resultou na morte de José Roberto na Ponte Paulo Guerra - negligenciaram o treinamento. Poucos motoristas da Borborema foram treinados e dificuldades foram impostas para a liberação dos motoristas para o treinamento prático, com um passeio de bicicleta.

Considerando apenas essas cinco informações apresentadas, dentre várias outras que podemos citar, podemos dizer que esse "acidente" envolvendo a Rita de Cássia poderia ter sido evitado? Porque se algo pode ser feito para se evitar um evento, mas não é feito, podemos chamar de crime, de irresponsabilidade, de incompetência, de inércia, mas nunca de acidente. Rita de Cássia merece respeito, todos merecemos. E ninguém merece morrer no trânsito.

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