sexta-feira, 4 de abril de 2014

Para os maus entendedores: ruas auto explicativas


É notório que a educação para o trânsito em Recife está longe de ser exemplar, assim como a fiscalização. Ambas funcionam como medidas de longo e curto prazo, respectivamente, para se transformar o nosso trânsito, permitindo uma mobilidade mais segura disponível pra todos. A educação dura anos para trazer resultados, e é a medida que mais se enraiza no comportamento das pessoas, ela pode fazer a diferença duradoura que precisamos. A fiscalização tira das pessoas a sensação de impunidade, inibindo o cometimento de infrações pelo receio da punição, mas é impossível ter um agente de trânsito em cada esquina 24 horas por dia. Que fazer então?

Foco na estrutura!
Reforçar visualização de faixa de pedestres
com semáforo para pedestres. Será mesmo necessário?
No mês passado a CTTU lançou um novo modelo de faixa de pedestre no Recife. Conforme podemos ler na matéria da Folha de Pernambuco, tem várias vantagens, como por exemplo maior visibilidade pelos motoristas, além de ter uma durabilidade quatro vezes maior.


Digno. Ótimo ver o mínimo de preocupação com o pedestre, o verdadeiro e merecido dono da rua. Mas nos bastidores dessa decisão, há um equívoco na forma como se pretende gerir o trânsito no Recife. Temos cerca de 700.000 carros no município, além de outras centenas de milhares dos municípios da região metropolitana, que circulam na capital. Certamente pelo menos 1 milhão de veículos circulam diariamente em Recife. O foco do controle do trânsito apenas em sinalização horizontal - pintura - e vertical - placas indicativas - remete à presunção de morarmos em uma cidade onde há obediência de todos os participantes do trânsito, principalmente esse milhão de motoristas, a estas indicações. Fosse assim, não teríamos mais de 600 mortes por ano no trânsito, ameaçando ultrapassar a taxa de homicídios.


A sinalização com tinta e placas é essencial, mas se torna um erro ao ser utilizada como única estratégia de controle de comportamento no trânsito, por se basear na confiança num comportamento exemplar de quem dirige um veículo de 1 tonelada na rua. Uma placa de 40km/h na Estrada do Encanamento, ou de 60km/h no Cais José Estelita, funciona a contento? Qual a taxa de obediência dessas sinalizações? Na faixa de pedestre no fim da Rui Barbosa, qual o percentual de motoristas que param para a travessia do pedestre? Essas medidas se tornam obsoletas quando pensadas isoladamente, a ponto de surgir um novo termo para um urbanismo moderno, mais eficiente, mais impositivo, menos "brodagem". São inúmeras estruturas usadas e difundidas no mundo inteiro, que tiram do motorista a chance de desobedecer a lei de trânsito. Estamos falando das self explaining streets, ou ruas auto explicativas. São transformações pequenas que podem levar a cidade a um patamar mais humano e tranquilo de mobilidade, medidas que induzem ao traffic calming.

Sorocaba: 71 faixas de pedestre em nível
Sobre faixa de pedestres ainda, um ótimo exemplo de traffic calming é a travessia de pedestres em nível. Permite a travessia de cadeirantes e idosos, por exemplo, sem a necessidade de descerem e subirem batentes ou rampas. Com essa estrutura, o motorista que se adapta ao nível da calçada ao cruzar uma faixa. Isso já induz o motorista a reduzir a velocidade, por estar claramente passando por uma estrutura que não foi feita pra ele.

Porém, as ideias para ruas auto explicativas vão mais longe do que faixas de pedestre. Diminuição da largura das vias fazem os motoristas naturalmente diminuírem a velocidade, além de encurtar a distância da travessia para o pedestre. O "martelo", estrutura muito utilizada na Europa, faz isso. E já está sendo utilizado em São Paulo também. Alargando apenas as esquinas, se torna uma opção barata comparada aos benefícios trazidos à população:
- diminuição da velocidade de circulação dos veículos.
- impossibilita o estacionamento - que já é proibido - na esquina, onde ocorrem a maioria das travessias de pedestre.
- força os motoristas a diminuírem a velocidade na conversão, devido à necessidade de maior precisão e maior angulação na curva.
- diminui a distância da travessia ao aproximas as esquinas, consequentemente diminuindo o tempo que o pedestre passa na rua, e assim diminuindo o risco na travessia.

Na foto abaixo temos um quarteirão residencial no bairro de Charpennes, em Lyon, França. Estacionamento nos dois lados da rua, com o martelo nas quatro esquinas, que é esse prolongamento da calçada em direção a rua. Com essa decisão, o poder público utiliza uma solução bem mais inteligente, barata e segura do que colocar um agente de trânsito em cada esquina da cidade. Asdurabformação da cidade vai ocorrendo aos poucos, criando-se uma estrutura que organiza o trânsito, evitando ao máximo a interferência do estado com recursos humanos, sujeita a mais falhas que a estrutura física. 
Martelo nas esquinas de Lyon. Mesma solução está sendo aplicada em algumas esquinas de São Paulo.
É assim com a estrutura cicloviária. Ruas com nenhuma estrutura dependem unicamente da educação para o trânsito seguro de ciclistas. A ciclorrota, simples pintura de bicicletas no chão, sem delimitação de espaço, já dá ao motorista o recado de que o ciclista tem o direito de andar na via, mesmo sem ciclofaixa ou ciclovia, o que o motorista já deveria saber. A ciclofaixa, pintura delimitando o espaço do ciclista, dá maior ênfase ao recado, destacando uma parte da via de todo o resto. Ainda depende um pouco mais da educação do que a ciclovia, que segrega completamente o ciclista. Em qualquer desses casos, não se tira a necessidade de fiscalização, mas se reduz bastante.. Em 2013 se espalhou nas redes sociais a imagem de um carro circulando na ciclovia de Boa Viagem. Só com punição se evita um desrespeito desse tamanho (consultamos no Detran e não há multas registradas para o veículo em 2013). Mas é certamente muito mais raro ver um carro na ciclovia do que na ciclofaixa, ou tirando fino de um ciclista.

Enquanto as ruas auto explicativas não chegam por aqui, os motoristas continuam alegando que é preciso primeiro educar. Não é seguindo essa premissa que o órgão de trânsito vai resolver os problemas atuais. A combinação fiscalização mais estrutura inteligente, seja com ruas auto explicativas ou outras ideais de traffic calming serve como um alento, um remédio para melhorar a situação atual. Não podemos esperar a educação surtir efeito daqui a 20, 30 anos.

Mas... E na Av. Conde da Boa Vista, a faixa de pedestre vermelha e branca vai resolver? Afinal, se tem um semáforo de pedestres no cruzamento com a rua Sete de Setembro, qual a finalidade de se destacar a faixa com mais uma cor? Se analisou o motivo dos atropelamentos no cruzamento? Consideremos duas opções principais:
1. Os veículos estão furando o sinal vermelho: não é a faixa branca e vermelha que fará os motoristas deixarem de furar um sinal. Duvido muito que seja esse o problema.
Orientador de trânsito NÃO é medida de traffic calming
2. Os pedestres estão atravessando no sinal verde para os veículos: pedestre nem ninguém gosta de arriscar a vida à toa. Um pedestre só fura um semáforo porque coloca na balança conforto e segurança. Tem uma falsa sensação de segurança ao furar o semáforo, e uma bastante dura realidade de um semáforo que demora para abrir para pedestres. Certamente este semáforo é um dos mais desrespeitados por pedestres no Recife. A solução não demanda tinta, nem orientadores de trânsito, nem um agente da CTTU de forma permanente na esquina.Basta mudar a configuração do semáforo, colocando um tempo digno, menor, de espera pro pedestre. Isso vai fazer o fator conforto pesar mais na balança, e o pedestre vai esperar o semáforo abrir pra ele. É CERTO que a quantidade de atropelamentos vai diminuir instantaneamente.

Quando teremos afinal uma gestão focada em traffic calming? Anúncio de  implantação de zonas 30 foi feito semana passada. A Prefeitura tem só que lembrar que não basta pintar 30km/h no chão. A ideia demanda alteração da configuração das ruas, com redução da largura das faixas de veículos, por exemplo, coisa que a CTTU nunca fez, e tem se mostrado irredutível no seu posicionamento em várias reuniões onde esse assunto entrou em pauta. Vide Estrada do Arraial e Estrada do Encanamento. Ambas têm placas de 40km/h espalhadas por toda a via, mas possuem faixas exageradamente largas de tráfego misto, possibilitando ao motorista a escolha de respeitar ou não a velocidade nos horários de trânsito livre. Perdeu-se uma grande oportunidade de se fazer ruas que não permitem o desenvolvimento de altas velocidades, seja com alargamento da calçada, com arborização, ou mesmo aumentando a largura da ciclofaixa, dando mais conforto ao ciclista no uso bidirecional que ele já faz da mesma.

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