segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A Ilha da Fantasia




"Venham para a Ilha da Fantasia!"

Praça do Marco Zero, 29 de dezembro de 2013.
No último domingo do mês a Prefeitura do Recife fecha várias ruas do Recife Antigo para dar um espaço para as pessoas usarem a rua, conviverem, usarem a cidade da forma como deveria ser todos os dias, afinal, a cidade não é um conglomerado de ruas, pontes e viadutos, ela é um espaço de convivência e é do poder público que deve vir a ajuda para a transformação deste tipo de espaço. Numa cidade onde a qualidade do asfalto é melhor que das calçadas, onde o semáforo fica aberto 8 minutos para os veículos e 15 segundos para os pedestres, onde se estaciona em praças, em cima de calçadas, em ciclofaixas, na frente de rampas de deficientes, em vagas de deficientes, é o agente de trânsito que está na ponta e que deveria ser o instrumento de equilíbrio dessa relação de uso do espaço público pelas pessoas e pelos veículos. O Recife Antigo se tornou uma espécie de ilha da fantasia, onde falta somente jogarem pétalas de rosas e tocarem músicas de boas vindas quando entramos na ilha. Ao sairmos de lá, voltamos ao mundo real de faixas de pedestre apagadas, buzinas, ameaças e total desrespeito às pessoas que transitam a pé pela nossa cidade.
Mas mesmo nessa ilha da fantasia, não estamos completamente protegidos. E justamente os agentes de trânsito, que estão na ponta, vivenciando os conflitos diários do trânsito, que têm a chance de agir para mudar este panorama, fiscalizando e consequentemente educando as pessoas, demonstram total despreparo e desconhecimento - ou descumprimento voluntário - da lei.

Relatamos dois fatos curiosos neste domingo, que parecem antagônicos, mas demonstram a mesma inércia de um órgão presente nas ruas, mas ausente de espírito, ausente do espírito de mudança.

Praça Tiradentes: cidadania direta na terra de ninguém.
Fato 1
Vários carros estavam estacionados sobre a Praça Tiradentes. Após a denúncia de um cidadão - e está prática está aumentando, ainda bem! -, a CTTU compareceu e multou todos os veículos. O lado ruim da história é que a praça fica entre a prefeitura e a Avenida Rio Branco. Difícil acreditar que outros guardas da CTTU não passaram por ali e ignoraram a infração. Logo apareceram proprietários justificando que não tinham onde estacionar, os mesmos que quando viajam para a Europa ou Estados Unidos não estacionam em praças por receio da fiscalização.

Fato 2
Depoimento de ciclista que tentou sensibilizar um guarda da CTTU sobre a situação dos pedestres na esquina da Avenida Rio Branco com a Avenida Cais do Apolo, a rua onde fica a Prefeitura do Recife.

"Chegando pela ciclofaixa pela ponte da Rio Branco, no Recife Antigo, vejo a cena de todos os dias. Quando o sinal está aberto para os carros na Cais do Apolo, pedestres não devem passar pois o semáforo está aberto para os carros que cruzam a faixa de pedestre. Quando abre para quem vem da ponte, os carros e ônibus entram à toda velocidade para a esquerda, não respeitando o artigo 214, inciso V do CTB (infração grave), que os obriga a dar preferência ao pedestre na conversão.
Mas neste domingo, havia um agente da CTTU na esquina. Fui até ele pedir que ele ajudasse os pedestres que tentavam sem sucesso atravessar do Banco do Brasil para a ponte.
- Boa tarde, seu guarda. Veja ali do outro lado da rua três pedestres que não conseguem atravessar na faixa porque os ônibus e carros estão virando à esquerda sem parar.
>>> Veja bem, eles deveriam atravessar a primeira metade quando este semáf...
- Mas de acordo com o CTB os veículos têm que parar na conversão para dar a preferência ao pedestre.
>>> Não, não. Se eles pararem vai parar todo o trânsito e causar engarrafamento. Não devem parar não. Deveria ter um semáforo para pedestres ali.
- Não importa o engarrafamento, o pedestre tem prioridade! E não vai ter semáforo em todas as esquinas da cidade. Nessa esquina não tem e eles deveriam parar.
>>> Não é assim que funciona.
- Boa tarde, seu guarda.

Desisti e fui embora."

É ótimo ter parte do Recife Antigo fechado para a circulação de veículos por um domingo no mês. Mas no resto da cidade inteira e no resto do mês inteiro, a cidade não pode continuar funcionando para poucos, só para quem tem carro. Essa mesma realidade temos no percurso da ciclofaixa, no qual a velocidade permitida aos domingos é de 40km/h, demonstrando que a Prefeitura sabe que 60km/h não é uma velocidade segura para o ambiente urbano. Durante os outros dias da semana, não temos cones, e a velocidade sobe pra 60km/h. O que a Prefeitura tem a dizer aos ciclistas e pedestres que usam a cidade de segunda a sábado sem cones? O que justifica essa velocidade? Certamente a mesma mentalidade do agente da CTTU em sua frase "Se eles pararem vai parar todo o trânsito e causar engarrafamento". Para todo o resto para que não parem os carros.

Queremos um Recife inclusivo. O trânsito é a vitrine onde a Prefeitura tem a chance de demonstrar que quer fazer uma cidade inteira pra todos, e não apenas uma Ilha da Fantasia, e que como podemos ver, nem é fantasia assim, já que nem mesmo no Recife Antigo a CTTU consegue ou quer conter o avanço dos carros sobre as pessoas e os espaços destinados a elas. Não foi em 2013. Esperamos que em 2014 haja a verdadeira mudança que precisamos e queremos.
Muda, Prefeitura! Muda, CTTU! Muda Recife!

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Blindei meu carro pra morrer em segurança

Eu não quero morrer de tiro.



Meu sonho é morrer dentro do conforto do meu carro, a 130km/h, no alto do Viaduto Capitão Temudo, vendo as luzes de Natal do Shopping RioMar. Bonito bragarái! Por isso blindei meu carro. Foi caro pra cacete, mas tem gente que paga uma nota no caixão, eu paguei na blindagem. Vou dever o condomínio uns meses, mas depois faço um acordo e pago sem multa, se ainda estiver vivo. Mas tinha que fazer essa blindagem. A turma toda já fez, fui o último! E vai que antes de chegar lá em cima do Temudo, tô no sinal da Agamenon com a Abidias de Carvalho e alguém atira contra o meu carro? Não! Eu tenho controle sobre minha vida! Comprei o carro justamente pra ter liberdade. E decidi que quero morrer de acidente de automóvel. Isso sim é morte de quem se destaca na sociedade. Mas o trânsito é uma loteria. A vantagem é que em Recife as chances de ganhar na loteria são maiores. Yeah!

Com um pouco de sorte, em vez de morrer, mato alguns antes. Quem sabe atropelo um ciclista, um pedestre, ou acerto um motoqueiro que fura um sinal num cruzamento. Depois rola umas cestas básicas, uns danos contra terceiros, mas o seguro paga. E se não pagar, foda-se! Bafômetro nessas horas é lenda, nunca fazem. Assim adio mais uns dias minha provável morte no trânsito. Quero lá morrer de velho, de câncer, de AIDS? Isso é coisa de viado! Morrer de doença é coisa do tempo dos meus pais. Já era! Mas no alto do Temudão não tem cruzamento. Bem que poderia ter um cruzamentão com 6 faixas de cada lado, sinais rápidos, os favelados que moram embaixo só iriam ouvir as porradas. Quem sabe cai uns carros lá de vez em quando pra acabar com essas merdas de favelas. Não sei porque não expulsaram esses maloqueiros dali, certamente daria pra fazer um túnel, ou mesmo o meu tão sonhado viaduto cruzando o Temudão, vindo lááá da Via Mangue, com curvas suaves, pra chegar zunindo a 130km/h. E da Agamenon, cheia de viadutos sem nenhum cruzamento daqui uns anos, quem sabe, vem a galera chutada também. Quero ouvir o ronco do motor parar, vem o barulho da freiada e da pancada - é bonito demais! todo mundo vem logo saber o que foi! - e ver meu carro voando comigo dentro, girando 8 vezes seguidas, o som nas alturas, ar condicionado no máximo, não tem airbag que dê conta! Hehehe. Mas tem que ser quando eu quero. Porra de blitz! Vejo logo no Waze onde tem pra escapar. Se eu perco minha carteira de motorista, adeus meus planos!

E no outro dia? Que beleza... capa de jornal! ACIDENTE NO TEMUDO. Putaquiupariu... vou entrar pra história. Feliz demais com essa cidade. Só em Recife o cara consegue realmente fazer o que quiser na rua. CTTU e nada é a mesma coisa. A única vez que fui multado recorri e ganhei. Outras 7 ou 8 vezes dei o dinheiro do guaraná. E em último caso, a carta na manga "conheço o Secretário de Mobilidade, melhor não multar que vai feder pro teu lado". De tiro aqui só morre pobre. Raramente chega na gente essas broncas. Não tem stress. Tomo uma de leve e dirijo, passo na faixa de pedestre e
Crime ou acidente?
finjo que mem vejo. Dou uma aceleradinha pro liso correr. Comédia demais! Cruzamento engarrafado tem que passar logo pra não perder a vez. Se fechar, é só fazer cara de que não é comigo. Só na merda do engarrafamento que passa uns ciclistas filhos da puta arranhando meu retrovisor. Vontade que dá é de trancar um desses na curva e jogá-lo pra baixo do carro. "Juro que não vi!" Hauhuahau. Param logo com essa frescura de ciclofaixa. Vai pra Jaqueira, porra!

Inclusive, falei com um amigo ciclochato que eu tava querendo morrer dentro do carro e o mané me veio com esse gráfico de mortes no trânsito. Nunca fui muito bom dessas contas, inutilidade do cacete! Meu negócio sempre foi saber o preço da gasosa e pisar fundo. No gráfico, o sacana ainda incluiu a Nigéria pra tirar onda. Tô nem aí. Recife, segundo o mané, teve 38,2 mortes a cada 100mil habitantes em 2011. Me veio com um blá blá blá de que é mais fácil morrer no trânsito em Recife do que de tiro no Rio ou em Sampa. Conversa feia da gota!

Chega! Não aguento mais. Vou tomar duas latinhas e sair chutado no asfalto novo que colocaram na Zona Norte. É 150km/h no Temudão! Até oitentinha já dá pra fazer um estrago. Tenho que resolver isso logo. Querem acabar com minha felicidade. Recebi uma carta do banco. Virão buscar meu carro na segunda-feira.  PUTA MERDA! Desse fim de semana não passa!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Paul Walker: a morte de um símbolo da velocidade

Na noite deste último sábado de novembro, morreu um símbolo de uma geração marcada pela velocidade: Paul Walker, ator, 40 anos, era passageiro de um Porsche que se espatifou contra uma árvore e pegou fogo. Polícia suspeita - e imagino que vá se confirmar pelo estrago - que o veículo estava em alta velocidade.
Menos duas vidas
Paul tinha uma carreira brilhante. Começou novo fazendo comerciais e atingiu o sucesso com a série de filmes Velozes e Furiosos. Morre novo, e deixa uma filha de 15 anos. Mas não estamos falando de um ator qualquer. O seu maior sucesso, uma série de filmes sobre carros, mostra Paul como o mocinho anti-herói que vira herói, e que tem como principal habilidade dirigir muito acima das velocidades permitidas, e descumprindo todas as regras de trânsito. Curiosamente, em toda a série, o personagem de Paul nunca acerta um pedestre nem um ciclista. Nenhuma semelhança com a realidade é mera coincidência.

O filme, já pelo seu título Velozes e Furiosos, bebe da agressividade encontrada no trânsito em quase todo o mundo, e regurgita de volta para o seu público, esse desejo de velocidade, essa sensação maravilhosa - para uns - de impunidade e liberdade. Entretanto, em sociedade, a liberdade é fundamentada em limites para que não cerceie a liberdade de outros. Pedestres e ciclistas perdem cada vez mais espaço e se sentem cada vez mais acuados inseguros nas ruas, enquanto milhares de irresponsáveis aceleram em espaços públicos, ignorando os limites impostos por lei para a segurança da coletividade. Existe no motorista um sentimento de confiança em sua perícia, e o governo trabalha somente com as campanhas em torno da responsabilidade (ou respeito). Sobre a perícia, não é critério válido para esta permissão de ser veloz, não é à toa que o Detran não fornece Carteira Nacional de Habilitação (CNH) baseada na perícia em ser veloz. Existe carteira de motorista de acordo com o tipo de veículo,  que atesta que o motorista tem a habilidade de conduzir determinado tipo de veículo, sempre dentro dos limites da lei. Se considerarmos os grandes peritos em dirigir em velocidade, os pilotos de Fórmula 1, os mesmos dirigem em alta velocidade dentro de um circuito fechado com inúmeras regras de segurança, e mesmo assim são comuns os acidentes. Esses mesmos peritos de alto nível, têm a mesma CNH que qualquer mortal para conduzir seu veículo nas ruas das cidades, e as mesmas obrigações de respeito à velocidade. Portanto, a perícia não é um critério a ser considerado, apesar de muitos motoristas a declararem como motivo da licença pra ser veloz. A responsabilidade tem a mesma falha da perícia, é uma característica individual sem controle pelo Estado. Somos milhões de motoristas no Brasil, na Região Metropolitana de Recife, mais de um milhão. O Estado não pode contar com a perícia e a responsabilidade de todos. É função do Estado coibir o comportamento desses  supostos peritos velozes e irresponsáveis. Contra comportamentos nocivos individuais, regras para o coletivo têm que ser duramente impostas, com duras penas.

Entretanto, vivemos no país da indústria automobilística acima de tudo, uma opção política equivocada que traz inúmeras consequências econômicas, ambientais, sociais, de saúde pública, etc. Mas essa decisão não pode se traduzir na liberdade total do ato de dirigir. Essa ligação tem que ser cortada. 
Caubói da Marlboro, antes do câncer
Comparativamente, temos no Brasil um vilão extremamente atacado pelo Ministério da Saúde, com sua imagem destruída, que mal aparece em novelas, propagandas na TV, ou revistas. O cigarro paga impostos altíssimos e não se contesta a nocividade do mesmo para a saúde do indivíduo e em menor proporção para as pessoas ao seu redor. Foi proibido em aviões, bares, restaurantes, exibe em suas embalagens imagens e mensagens sobre os danos à saúde. O caubói da Marlboro, morreu de câncer em 1992. Em 2000, seu irmão cedeu ao governo brasileiro a imagem do caubói para a campanha "Sabe aquele caubói da propaganda do cigarro? Morreu de câncer. Cigarro faz mal até na propaganda."
O carro é nocivo, mata mais de 40.000 pessoas por ano no Brasil (uma epidemia!), de todas as idades e classes. Muitas vezes tira a vida de quem nunca dirigiu e está apenas a caminho de casa. Entretanto seus impostos são constantemente reduzidos, seu combustível é subsidiado, sua propaganda está presente em todos os meios o tempo inteiro, associada à sucesso, liberdade, potência; as prefeituras exigem vagas para automóveis nos estabelecimentos, e a maioria do espaço da cidade é destinada ao seu uso e guarda.

Paul Walker foi o caubói moderno do automóvel. Infelizmente servirá de exemplo  - assim esperamos - da forma mais trágica, com sua vida, assim como o caubói da Marlboro. Paul não morreu de overdose, de AIDS, nem de câncer no pulmão, morreu dentro de um carro em alta velocidade. Por sorte o carro onde estava não acertou alguém na calçada, pedalando ou em outro carro. Está na hora de reconhecer isso como uma questão de saúde e de segurança pública também. Morrer em acidente de carro não é uma fatalidade! Não foi acidente!