terça-feira, 22 de outubro de 2013

A ditadura dos bípedes

Nesta terça-feira, 21 de outubro, a Folha de São Paulo publicou matéria informando sobre a decisão da Prefeitura da Cidade de São Paulo, de reduzir as velocidades dos veículos motorizados no centro: 40km/h para os carros e 50km/h para os ônibus. É gratificante ver a maior cidade do país, onde as mortes no trânsito estavam se tornando algo cultural, beirando o aceitável, uma iniciativa de redução de velocidades.Como podemos ver no quadro abaixo, é um avanço, mas ainda não é o objetivo. No mundo inteiro, milhares de cidades estão determinando Zonas 30 em certas áreas do perímetro urbano, humanizando o trânsito e transformando a cidade em um lugar de convivência. É uma importante etapa na retransformação das cidades em Walkable Cities (cidades caminháveis), característica que foi se perdendo desde o boom da indústria automobilística. Para quem está na base da pirâmide hierárquica do trânsito, - o sempre favorecido motorista -, a grande dificuldade sempre é perceber que base não é topo, e que quando falamos em fazer a cidade um ambiente mais seguro para as pessoas, pensamos principalmente no bípede no seu estado natural: o pedestre.

Mas ao terminar de ler a matéria, me deparei com um comentário que vai além de reacionário. O motorista - nada confirma essa situação, mas o tom de reclamação do comentário é uma boa pista do modal que utiliza - reclama de uma ditadura dos bípedes!


Bom, se o sujeito reclama de uma ditadura de bípedes, na condição de oprimido por esta ditadura, ele não se inclui na definição de bípede. Isto me fez lembrar do ótimo desenho do Pateta Motorista, momento sublime em que a Disney, como de costume, transforma seus animais em bípedes falantes, humanizando-os, só que neste desenho especificamente, ao deixar de ser bípede e ganhar rodas e motor, o personagem Senhor Walker - Senhor Caminhante! - se desumaniza completamente.



Me assusta pensar que alguém que dirige um veículo se esquece que ser motorista, pedestre, ou ciclista, é uma condição momentânea e não intrínseca da pessoa. Introjetam toda a informação de poder e status que é vendida junto aos automóveis, adestrados a pensar que o mundo da liberdade e da mobilidade foi conquistado. Claro... até tirar o carro da concessionária e chegar no engarrafamento mais próximo. Mas o que vemos nesse tipo de comentário vai além de como alguns motoristas se vêem no trânsito, e representa o modo como esse cidadão, portado de um objeto pesado e veloz, vê o mundo à sua volta e as outras pessoas. Ele reduz o homo sapiens à uma condição inferior a do homem motorizado, exatamente o contrário do que diz o CTB (e não o citado CNT no comentário); ele entende o pedestre como alguém menor no trânsito, com menos direitos. O que podemos perceber é uma interpretação do direito de ir e vir de forma estrita e egoísta: o meu ir e vir.

O titular do comentário só enxerga o ir e vir como ir e voltar ao seu destino da forma mais rápida possível. A segurança não é fator considerado em sua análise pois São Paulo, assim como Recife e tantas outras, tem tradicionalmente suas ruas preparadas para o trânsito de carros, de forma que quem está dentro do veículo não percebe a ameaça de toneladas em alta velocidade que este produz. Essa decisão administrativa do poder municipal de diminuir as velocidades é o início de uma preocupação com o a segurança de todas as pessoas que transitam pelas ruas da cidade, seja no asfalto ou na calçada.  

Para analisar a acusação do Senhor Walker paulistano de que estamos vivendo numa Ditadura de Bípedes, podemos descrever inúmeras informações como políticas públicas de mobilidade, gastos com mobilidade, divisão do espaço público, segurança no trânsito e vários outros critérios. Evitando me alongar muito, cito alguns fatos sobre Recife e São Paulo, cidades que conheço um pouco mais que as outras no quesito mobilidade:
- Em Recife, a obra de mobilidade mais cara da história da cidade (R$500 milhões) não é para bípedes,
Via Mangue: maior obra de mobilidade da história
do Recife. Engarrafará no primeiro dia de funcionamento.
tem uma ciclovia que joga o ciclista bípede para fora da cidade, e não contemplará nem mesmo os bípedes entuchados dentro de um curral ambulante sobre rodas (ônibus). Se chama Via Mangue e é para carros.
- Em Recife, São Paulo e na maioria das capitais do país, os carros ocupam 80% do espaço público, transportando menos de 30% das pessoas.
- Em São Paulo, historicamente as mortes por atropelamento de bípedes no trânsito gira em torno de 50%. Ainda não há histórico de atropelamentos causados por bípedes.
- Os semáforos para bípedes demoram para abrir e fecham rapidamente.
- Se há reclamação sobre a qualidade do asfalto, pode ter certeza que sempre a qualidade dele está melhor que a das calçadas.

Dizer que estamos numa ditadura dos bípedes é idiotice do mesmo tamanho que dizer que temos uma ditadura feminista, uma ditadura gay, ou uma ditadura dos negros. São minorias no sentido legal, partes da população com direitos suprimidos ou oprimidos, que estão obtendo pequenas conquistas a duras penas. E ao menor sinal de mudança, de pequenas melhorias conquistadas, são chamados de ditadores.

Não há dúvida de que estamos numa Carrocracia que começa no Legislativo, exigindo quantidade mínima de vagas de automóvel para estabelecimentos comerciais e residências; passa pelo Executivo em todas as esferas, dando subsídios à compra de automóveis, aliviando na fiscalização e na aplicação de multas, fornecendo obras que favorecem o uso do automóvel, dilacerando os espaços públicos destinados aos bípedes para a passagem dos velozes e furiosos; e termina no Judiciário, que trata os crimes de trânsito com brandura e displicência. Com um ambiente completamente favorável ao uso do automóvel, o caminho mais fácil ao bípede é cortar simbolicamente as próprias pernas e se encaixar entre 4 rodas sobre o seu controle. Ironicamente, este mesmo que sofria nas calçadas agora não suporta os ainda bípedes. O mesmo que diz que usa o carro porque o ônibus é ruim e andar de bicicleta é perigoso, mas não aceita perder espaço para faixas exclusivas de ônibus e ciclovias. É apaixonado pelas obras do metrô, porque gera mobilidade para os bípedes sem tirar o mínimo que seja dos 80% de um espaço já conquistado, considerado direito adquirido. É tipicamente o oprimido que conquistou sua parcela de poder e agora oprime.

Pode esperar, amigo. A ditadura dos bípedes vai chegar, é somente uma questão de tempo.

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