segunda-feira, 11 de março de 2013

O ponto de mudança

para a CTTU, com todo o meu amor

Recife, quinta-feira, 7 de março. Um garoto de 16 anos imprudentemente atravessa uma faixa de pedestres em Boa Viagem, sobre sua bicicleta. Ele e vários outros pedestres fazem o mesmo: atravessam a rua com sinal verde para os carros. Todos culpados. Condenados previamente, por sua condição no trânsito. Mas só o garoto paga pelo seu crime. Um crime hediondo: atravessar a rua no sinal verde, sem olhar para os lados. O pagamento foi justíssimo para tal crime: a própria vida. Os outros pedestres saem impunes. Tremenda injustiça. Deveriam morrer todos. Suicidas! Culpados de atravessar a rua feito loucos, irresponsáveis!

Essa lógica perversa tem predominado nos meios de comunicação e nas redes sociais, além de claro nas conversas de corredor. “O ciclista foi imprudente. Ponto final”. Não. NÃO! Não podemos concordar com isso. Isso tem que ser ponto de mudança! “Foi um acidente, uma fatalidade”. Será? Vamos às notícias do fim de semana... Sexta-feira, um dia após o atropelamento do jovem em Boa Viagem, um ciclista experiente está parado no sinal, na Rosa e Silva, uma moto vem por trás dele e o derruba. Fura o sinal e segue em frente. O ciclista cai embaixo do ônibus. Pedestres desesperados batem no ônibus para avisar ao motorista que tem alguém embaixo do ônibus. Por pouco o ciclista não perde as duas pernas. Deveriam gritar “Este não merece morrer! Este não!”. Foi absolvido. “Foi um milagre!”, disse uma pedestre que ajudou a socorrê-lo. Saiu barato. Queimadura de terceiro grau nas duas pernas. Claro, o crime foi menor. Ele apenas se atreveu a se locomover de bicicleta na rua. Um insolente! A namorada do ciclista entra em contato comigo e no meio da conversa, uma frase me faz gelar: “não sei se tenho coragem de pedalar na rua de novo”. Na frente do computador, eu não consigo pensar em motivos para escrever qualquer coisa que a motive. No mesmo dia, sexta-feira, na Imbiribeira, outro ciclista atropelado. E no fim de semana, pedestre atropelado na Estrada do Arraial. Em Boa Viagem, outra morte. Misteriosamente, no trecho inicial da Domingos Ferreira, aparece o desenho em contorno branco de um corpo no chão. Algum pedestre - outro insolente! - se atreveu a atravessar no trecho que tiraram o canteiro central. Veredito: CULPADO! Culpado por enfrentar seis faixas de veículos, colocadas no meio da cidade. Elas são um claro recado para o pedestre: “Saia daqui! Aqui não é o seu lugar!”. Então, será que tantos acontecimentos são fatalidades? Acidentes?

Temos em Recife uma divisão clara e impositiva do espaço para os carros e para as pessoas. Entretanto, mais do que um ordenamento do trânsito, há verdadeiros muros virtuais. As condições de uso do espaço geram uma barreira, um abismo. Consigo visualizar claramente as calçadas estreitas, e entre elas, em vez de asfalto, um precipício de 200 metros. As faixas de pedestre são pontes de madeira podre, com ventos de 60, 80km/h que podem passar a qualquer momento e te jogar para o fundo do abismo. Os semáforos são meras flâmulas que te dão uma precária segurança de que nesse momento os ventos estão calmos, normalmente por apenas 15 segundos. Simplesmente acredite, e corra. Corra pela sua vida! Pode se arriscar na ponte (faixa). E ai de você que tente atravessar a ponte com a flâmula dançando. É abismo na certa. Os ventos não param por nada. Os ciclistas? Rá rá rá! Aviões de papel de seda, loucos que insistem em invadir o espaço que não foi feito pra eles. E não foi MESMO.

Voltando à realidade de nossa Recife carrocrata... Quem dera fossem ventos o que temos rodando a 60, 80km/h pelas ruas! Em vez disso, são 600.000 objetos de 1 tonelada ou mais, verdadeiras navalhas afiadas, passando sempre a centímetros de nossos pescoços. Errou, morreu. Ou errou, matou. “Foi apenas um acidente. Acontece.” Mas acontece mais do que deveria. Nosso nível de aceitação a “acidentes” de trânsito está muito alto. Por ano, em Recife, morrem 15 pessoas por cada 100.000 habitantes no trânsito. Em Amsterdam, esse número é de 1,5. Olhamos para o trabalho da CTTU (Companhia de Trânsito e Transporte Urbano de Recife) e da Secretaria de Mobilidade e o que vemos são informes sobre acidentes e engarrafamentos, proibição de retornos, operação tapa-buracos, acreditando cegamente que a engenharia de tráfego pode resolver todos os problemas. O fluxo de carros é a menina dos olhos da CTTU, não importando sobre que poça de sangue ela transite. Não há nenhuma relação dos órgãos de gestão do trânsito com os dados sobre mortes no trânsito em Recife. Se para cada xxx mil veículos que passem por um bairro, houver apenas um atropelamento, a conta bate para a prefeitura. Aquela pessoa que recebeu a cacetada de uma tonelada de ferro é efeito colateral.

Pois eu declaro então abertamente que a CTTU - e consequentemente a Secretaria de Mobilidade - tem sua grande parcela de responsabilidade com as mortes, os atropelamentos e todos os eventos de trânsito em Recife, não só os engarrafamentos. Estes, por sinal, são no geral culpa de quem coloca o carro na rua todos os dias. A CTTU não tem capacidade de resolver isso que todos esperam que seja sua única função. Órgão nenhum tem. E desafio a CTTU a assumir esse corajoso posicionamento. Gestão do trânsito não  se resume a fazer veículos se moverem mais rapidamente. Assuma sua culpa pelas mortes decorrentes do modelo de mobilidade adotado. Tenha a coragem de trocar o fluxo insano de veículos pelo fluxo seguro de pessoas. E inclua em suas estatísticas, em suas malfadadas metas, a estatística de mortes e atropelamentos no Recife, e a consequente meta de diminuição desses eventos. Porque enquanto a meta for fluxo de veículos motorizados, o órgão está excluindo de início todos os ciclistas e pedestres, além de subvalorizar as 30 a 100 pessoas que estão dentro de um ônibus. Ou a CTTU se torna nosso ponto de mudança, com inúmeras ações pró pessoas que nem vou me preocupar em destrinchar neste texto, ou ela é o ponto final da mobilidade no Recife. Um ponto final para todos nós. E nessa realidade, não vejo utilidade nenhuma para o órgão. Nessa realidade, minha sugestão para a Prefeitura é a implosão do prédio da CTTU e a construção de um cemitério em seu lugar. Vamos precisar.

Cezar Martins
cidadão, às vezes ciclista

3 comentários:

  1. Duas grandes questões atuam neste processo de mortificação no tráfego automobilístico. A falta de educação do motorista é, em minha opinião, uma das responsáveis pelo problema. Não se deve esperar tanto dos poderes públicos quando a falta de cidadania é um dos ingredientes dessa mistura. O bolo está no forno. O bolo de mortes, sangue vulgar de quedas, atropelamentos, desfechos trágicos nas vias da RMR. Em contrapartida, a falta de percepção desses órgãos acaba tornando-se, quiçá, o problema matriz de todos os demais. Vamos tentar, ao menos tentar, incutir na cabeça do povo (afinal de contas pra que servem as campanhas?) a sistemática básica das regras de trânsito: veículos maiores se responsabilizam por menores; pedestre na rua tem preferencia independente dos sinais; motoristas, trafeguem a 1,5m dos ciclistas, etc, etc, etc, a sistemática de respeito ao trânsito, ao próximo e a bem coletivo maior: a vida. Enfim, é só o desabafo de um às vezes ciclista.

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    1. Isso, Marco! Veja como exemplo o twitter da CTTU. São 16000 seguidores. Não tem uma mensagem de educação no trânsito. É trânsitto fluindo, trânsito lento, acidente, viatura a caminho. Só se fala disso. Perde-se a oportunidade de usar essa grande base de seguidores para lhes ensinar educação no trânsito.

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