segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

A Ilha da Fantasia




"Venham para a Ilha da Fantasia!"

Praça do Marco Zero, 29 de dezembro de 2013.
No último domingo do mês a Prefeitura do Recife fecha várias ruas do Recife Antigo para dar um espaço para as pessoas usarem a rua, conviverem, usarem a cidade da forma como deveria ser todos os dias, afinal, a cidade não é um conglomerado de ruas, pontes e viadutos, ela é um espaço de convivência e é do poder público que deve vir a ajuda para a transformação deste tipo de espaço. Numa cidade onde a qualidade do asfalto é melhor que das calçadas, onde o semáforo fica aberto 8 minutos para os veículos e 15 segundos para os pedestres, onde se estaciona em praças, em cima de calçadas, em ciclofaixas, na frente de rampas de deficientes, em vagas de deficientes, é o agente de trânsito que está na ponta e que deveria ser o instrumento de equilíbrio dessa relação de uso do espaço público pelas pessoas e pelos veículos. O Recife Antigo se tornou uma espécie de ilha da fantasia, onde falta somente jogarem pétalas de rosas e tocarem músicas de boas vindas quando entramos na ilha. Ao sairmos de lá, voltamos ao mundo real de faixas de pedestre apagadas, buzinas, ameaças e total desrespeito às pessoas que transitam a pé pela nossa cidade.
Mas mesmo nessa ilha da fantasia, não estamos completamente protegidos. E justamente os agentes de trânsito, que estão na ponta, vivenciando os conflitos diários do trânsito, que têm a chance de agir para mudar este panorama, fiscalizando e consequentemente educando as pessoas, demonstram total despreparo e desconhecimento - ou descumprimento voluntário - da lei.

Relatamos dois fatos curiosos neste domingo, que parecem antagônicos, mas demonstram a mesma inércia de um órgão presente nas ruas, mas ausente de espírito, ausente do espírito de mudança.

Praça Tiradentes: cidadania direta na terra de ninguém.
Fato 1
Vários carros estavam estacionados sobre a Praça Tiradentes. Após a denúncia de um cidadão - e está prática está aumentando, ainda bem! -, a CTTU compareceu e multou todos os veículos. O lado ruim da história é que a praça fica entre a prefeitura e a Avenida Rio Branco. Difícil acreditar que outros guardas da CTTU não passaram por ali e ignoraram a infração. Logo apareceram proprietários justificando que não tinham onde estacionar, os mesmos que quando viajam para a Europa ou Estados Unidos não estacionam em praças por receio da fiscalização.

Fato 2
Depoimento de ciclista que tentou sensibilizar um guarda da CTTU sobre a situação dos pedestres na esquina da Avenida Rio Branco com a Avenida Cais do Apolo, a rua onde fica a Prefeitura do Recife.

"Chegando pela ciclofaixa pela ponte da Rio Branco, no Recife Antigo, vejo a cena de todos os dias. Quando o sinal está aberto para os carros na Cais do Apolo, pedestres não devem passar pois o semáforo está aberto para os carros que cruzam a faixa de pedestre. Quando abre para quem vem da ponte, os carros e ônibus entram à toda velocidade para a esquerda, não respeitando o artigo 214, inciso V do CTB (infração grave), que os obriga a dar preferência ao pedestre na conversão.
Mas neste domingo, havia um agente da CTTU na esquina. Fui até ele pedir que ele ajudasse os pedestres que tentavam sem sucesso atravessar do Banco do Brasil para a ponte.
- Boa tarde, seu guarda. Veja ali do outro lado da rua três pedestres que não conseguem atravessar na faixa porque os ônibus e carros estão virando à esquerda sem parar.
>>> Veja bem, eles deveriam atravessar a primeira metade quando este semáf...
- Mas de acordo com o CTB os veículos têm que parar na conversão para dar a preferência ao pedestre.
>>> Não, não. Se eles pararem vai parar todo o trânsito e causar engarrafamento. Não devem parar não. Deveria ter um semáforo para pedestres ali.
- Não importa o engarrafamento, o pedestre tem prioridade! E não vai ter semáforo em todas as esquinas da cidade. Nessa esquina não tem e eles deveriam parar.
>>> Não é assim que funciona.
- Boa tarde, seu guarda.

Desisti e fui embora."

É ótimo ter parte do Recife Antigo fechado para a circulação de veículos por um domingo no mês. Mas no resto da cidade inteira e no resto do mês inteiro, a cidade não pode continuar funcionando para poucos, só para quem tem carro. Essa mesma realidade temos no percurso da ciclofaixa, no qual a velocidade permitida aos domingos é de 40km/h, demonstrando que a Prefeitura sabe que 60km/h não é uma velocidade segura para o ambiente urbano. Durante os outros dias da semana, não temos cones, e a velocidade sobe pra 60km/h. O que a Prefeitura tem a dizer aos ciclistas e pedestres que usam a cidade de segunda a sábado sem cones? O que justifica essa velocidade? Certamente a mesma mentalidade do agente da CTTU em sua frase "Se eles pararem vai parar todo o trânsito e causar engarrafamento". Para todo o resto para que não parem os carros.

Queremos um Recife inclusivo. O trânsito é a vitrine onde a Prefeitura tem a chance de demonstrar que quer fazer uma cidade inteira pra todos, e não apenas uma Ilha da Fantasia, e que como podemos ver, nem é fantasia assim, já que nem mesmo no Recife Antigo a CTTU consegue ou quer conter o avanço dos carros sobre as pessoas e os espaços destinados a elas. Não foi em 2013. Esperamos que em 2014 haja a verdadeira mudança que precisamos e queremos.
Muda, Prefeitura! Muda, CTTU! Muda Recife!

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Blindei meu carro pra morrer em segurança

Eu não quero morrer de tiro.



Meu sonho é morrer dentro do conforto do meu carro, a 130km/h, no alto do Viaduto Capitão Temudo, vendo as luzes de Natal do Shopping RioMar. Bonito bragarái! Por isso blindei meu carro. Foi caro pra cacete, mas tem gente que paga uma nota no caixão, eu paguei na blindagem. Vou dever o condomínio uns meses, mas depois faço um acordo e pago sem multa, se ainda estiver vivo. Mas tinha que fazer essa blindagem. A turma toda já fez, fui o último! E vai que antes de chegar lá em cima do Temudo, tô no sinal da Agamenon com a Abidias de Carvalho e alguém atira contra o meu carro? Não! Eu tenho controle sobre minha vida! Comprei o carro justamente pra ter liberdade. E decidi que quero morrer de acidente de automóvel. Isso sim é morte de quem se destaca na sociedade. Mas o trânsito é uma loteria. A vantagem é que em Recife as chances de ganhar na loteria são maiores. Yeah!

Com um pouco de sorte, em vez de morrer, mato alguns antes. Quem sabe atropelo um ciclista, um pedestre, ou acerto um motoqueiro que fura um sinal num cruzamento. Depois rola umas cestas básicas, uns danos contra terceiros, mas o seguro paga. E se não pagar, foda-se! Bafômetro nessas horas é lenda, nunca fazem. Assim adio mais uns dias minha provável morte no trânsito. Quero lá morrer de velho, de câncer, de AIDS? Isso é coisa de viado! Morrer de doença é coisa do tempo dos meus pais. Já era! Mas no alto do Temudão não tem cruzamento. Bem que poderia ter um cruzamentão com 6 faixas de cada lado, sinais rápidos, os favelados que moram embaixo só iriam ouvir as porradas. Quem sabe cai uns carros lá de vez em quando pra acabar com essas merdas de favelas. Não sei porque não expulsaram esses maloqueiros dali, certamente daria pra fazer um túnel, ou mesmo o meu tão sonhado viaduto cruzando o Temudão, vindo lááá da Via Mangue, com curvas suaves, pra chegar zunindo a 130km/h. E da Agamenon, cheia de viadutos sem nenhum cruzamento daqui uns anos, quem sabe, vem a galera chutada também. Quero ouvir o ronco do motor parar, vem o barulho da freiada e da pancada - é bonito demais! todo mundo vem logo saber o que foi! - e ver meu carro voando comigo dentro, girando 8 vezes seguidas, o som nas alturas, ar condicionado no máximo, não tem airbag que dê conta! Hehehe. Mas tem que ser quando eu quero. Porra de blitz! Vejo logo no Waze onde tem pra escapar. Se eu perco minha carteira de motorista, adeus meus planos!

E no outro dia? Que beleza... capa de jornal! ACIDENTE NO TEMUDO. Putaquiupariu... vou entrar pra história. Feliz demais com essa cidade. Só em Recife o cara consegue realmente fazer o que quiser na rua. CTTU e nada é a mesma coisa. A única vez que fui multado recorri e ganhei. Outras 7 ou 8 vezes dei o dinheiro do guaraná. E em último caso, a carta na manga "conheço o Secretário de Mobilidade, melhor não multar que vai feder pro teu lado". De tiro aqui só morre pobre. Raramente chega na gente essas broncas. Não tem stress. Tomo uma de leve e dirijo, passo na faixa de pedestre e
Crime ou acidente?
finjo que mem vejo. Dou uma aceleradinha pro liso correr. Comédia demais! Cruzamento engarrafado tem que passar logo pra não perder a vez. Se fechar, é só fazer cara de que não é comigo. Só na merda do engarrafamento que passa uns ciclistas filhos da puta arranhando meu retrovisor. Vontade que dá é de trancar um desses na curva e jogá-lo pra baixo do carro. "Juro que não vi!" Hauhuahau. Param logo com essa frescura de ciclofaixa. Vai pra Jaqueira, porra!

Inclusive, falei com um amigo ciclochato que eu tava querendo morrer dentro do carro e o mané me veio com esse gráfico de mortes no trânsito. Nunca fui muito bom dessas contas, inutilidade do cacete! Meu negócio sempre foi saber o preço da gasosa e pisar fundo. No gráfico, o sacana ainda incluiu a Nigéria pra tirar onda. Tô nem aí. Recife, segundo o mané, teve 38,2 mortes a cada 100mil habitantes em 2011. Me veio com um blá blá blá de que é mais fácil morrer no trânsito em Recife do que de tiro no Rio ou em Sampa. Conversa feia da gota!

Chega! Não aguento mais. Vou tomar duas latinhas e sair chutado no asfalto novo que colocaram na Zona Norte. É 150km/h no Temudão! Até oitentinha já dá pra fazer um estrago. Tenho que resolver isso logo. Querem acabar com minha felicidade. Recebi uma carta do banco. Virão buscar meu carro na segunda-feira.  PUTA MERDA! Desse fim de semana não passa!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Paul Walker: a morte de um símbolo da velocidade

Na noite deste último sábado de novembro, morreu um símbolo de uma geração marcada pela velocidade: Paul Walker, ator, 40 anos, era passageiro de um Porsche que se espatifou contra uma árvore e pegou fogo. Polícia suspeita - e imagino que vá se confirmar pelo estrago - que o veículo estava em alta velocidade.
Menos duas vidas
Paul tinha uma carreira brilhante. Começou novo fazendo comerciais e atingiu o sucesso com a série de filmes Velozes e Furiosos. Morre novo, e deixa uma filha de 15 anos. Mas não estamos falando de um ator qualquer. O seu maior sucesso, uma série de filmes sobre carros, mostra Paul como o mocinho anti-herói que vira herói, e que tem como principal habilidade dirigir muito acima das velocidades permitidas, e descumprindo todas as regras de trânsito. Curiosamente, em toda a série, o personagem de Paul nunca acerta um pedestre nem um ciclista. Nenhuma semelhança com a realidade é mera coincidência.

O filme, já pelo seu título Velozes e Furiosos, bebe da agressividade encontrada no trânsito em quase todo o mundo, e regurgita de volta para o seu público, esse desejo de velocidade, essa sensação maravilhosa - para uns - de impunidade e liberdade. Entretanto, em sociedade, a liberdade é fundamentada em limites para que não cerceie a liberdade de outros. Pedestres e ciclistas perdem cada vez mais espaço e se sentem cada vez mais acuados inseguros nas ruas, enquanto milhares de irresponsáveis aceleram em espaços públicos, ignorando os limites impostos por lei para a segurança da coletividade. Existe no motorista um sentimento de confiança em sua perícia, e o governo trabalha somente com as campanhas em torno da responsabilidade (ou respeito). Sobre a perícia, não é critério válido para esta permissão de ser veloz, não é à toa que o Detran não fornece Carteira Nacional de Habilitação (CNH) baseada na perícia em ser veloz. Existe carteira de motorista de acordo com o tipo de veículo,  que atesta que o motorista tem a habilidade de conduzir determinado tipo de veículo, sempre dentro dos limites da lei. Se considerarmos os grandes peritos em dirigir em velocidade, os pilotos de Fórmula 1, os mesmos dirigem em alta velocidade dentro de um circuito fechado com inúmeras regras de segurança, e mesmo assim são comuns os acidentes. Esses mesmos peritos de alto nível, têm a mesma CNH que qualquer mortal para conduzir seu veículo nas ruas das cidades, e as mesmas obrigações de respeito à velocidade. Portanto, a perícia não é um critério a ser considerado, apesar de muitos motoristas a declararem como motivo da licença pra ser veloz. A responsabilidade tem a mesma falha da perícia, é uma característica individual sem controle pelo Estado. Somos milhões de motoristas no Brasil, na Região Metropolitana de Recife, mais de um milhão. O Estado não pode contar com a perícia e a responsabilidade de todos. É função do Estado coibir o comportamento desses  supostos peritos velozes e irresponsáveis. Contra comportamentos nocivos individuais, regras para o coletivo têm que ser duramente impostas, com duras penas.

Entretanto, vivemos no país da indústria automobilística acima de tudo, uma opção política equivocada que traz inúmeras consequências econômicas, ambientais, sociais, de saúde pública, etc. Mas essa decisão não pode se traduzir na liberdade total do ato de dirigir. Essa ligação tem que ser cortada. 
Caubói da Marlboro, antes do câncer
Comparativamente, temos no Brasil um vilão extremamente atacado pelo Ministério da Saúde, com sua imagem destruída, que mal aparece em novelas, propagandas na TV, ou revistas. O cigarro paga impostos altíssimos e não se contesta a nocividade do mesmo para a saúde do indivíduo e em menor proporção para as pessoas ao seu redor. Foi proibido em aviões, bares, restaurantes, exibe em suas embalagens imagens e mensagens sobre os danos à saúde. O caubói da Marlboro, morreu de câncer em 1992. Em 2000, seu irmão cedeu ao governo brasileiro a imagem do caubói para a campanha "Sabe aquele caubói da propaganda do cigarro? Morreu de câncer. Cigarro faz mal até na propaganda."
O carro é nocivo, mata mais de 40.000 pessoas por ano no Brasil (uma epidemia!), de todas as idades e classes. Muitas vezes tira a vida de quem nunca dirigiu e está apenas a caminho de casa. Entretanto seus impostos são constantemente reduzidos, seu combustível é subsidiado, sua propaganda está presente em todos os meios o tempo inteiro, associada à sucesso, liberdade, potência; as prefeituras exigem vagas para automóveis nos estabelecimentos, e a maioria do espaço da cidade é destinada ao seu uso e guarda.

Paul Walker foi o caubói moderno do automóvel. Infelizmente servirá de exemplo  - assim esperamos - da forma mais trágica, com sua vida, assim como o caubói da Marlboro. Paul não morreu de overdose, de AIDS, nem de câncer no pulmão, morreu dentro de um carro em alta velocidade. Por sorte o carro onde estava não acertou alguém na calçada, pedalando ou em outro carro. Está na hora de reconhecer isso como uma questão de saúde e de segurança pública também. Morrer em acidente de carro não é uma fatalidade! Não foi acidente!


quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A prisão dos pedestres

Dilma vetou um projeto de lei que obrigava a colocação de faixas de pedestres próximo a escolas públicas e privadas. O PL colocava que deveria-se ter uma faixa de pedestres a pelo menos 1km das escolas. Independente das razões que levaram ao veto, defendi no momento que essas faixas não seriam bem vindas em qualquer localidade. Isso porque em ruas de pouco fluxo motorizado, as faixas podem servir de prisão para os pedestres que passam.


- Mas, a faixa é para a segurança do pedestre, e…


Calma, eu explico! Em pequenas cidades do interior ou em ruas de bairro com baixo fluxo e velocidade, os pedestres tomam a liberdade de atravessar em qualquer ponto. Cabe, como descreve o código, aos veículos tomarem conta da incolumidade peatonal. No momento da colocação da faixa, obriga-se - pelo menos legalmente - ao pedestre a atravessar naquele ponto - se estiver a até 50m dele (artigo 69 do CTB). Por isso, defendemos a transformação das ruas em espaços de convívio pacífico, que, a depender da localidade, não necessitarão de faixas para a travessia, gozando de ampla mobilidade e total preferência.


Pedestres são os mais frágeis das ruas e acabam perdendo sua preferência de travessia e uso total do espaço público em detrimento de veículos motorizados que passam a altas e mortíferas velocidades. No Rio de Janeiro, fecharam parte da orla para o uso apenas de não motorizados. Era um caos de pessoas nos mais diferentes modais, transitando de forma respeitosa. Não houve um choque sequer entre pedestres, ciclistas, skatistas, patinadores e outros com modais super-esquisitos. Não havia nenhuma preocupação de alinhamento das pessoas, sendo que elas pareciam partículas de gases andando e correndo nos mais diversos ritmos e nas mais diversas direções.



Então, ao pedestre e ao trânsito diário, regras e prisões são impostas para que outros modais possam conviver em mais alta velocidade. Isso parece ser a síntese da nossa forma de se deslocar: restringimos as pessoas para que outras passem com sua pressa com suas máquinas mortíferas. Até onde isso é aceitável é que devemos discutir, pois já passou do nível do aceitável há muito tempo!


No Recife, podemos dizer que não existem faixas de pedestres! Na verdade, só existe uma: a que fica entre o Shopping Plaza e o Hiperbompreço Casa Forte. As outras, quando estão pintadas, parecem ser mera obra de arte nas ruas, já que os motoristas passam por elas e não dão a devida preferência aos pedestres. Aproveitam do peso de seus veículos para impor a paralização e a submissão total dos pedestres. Então, antes de ser um refúgio de segurança e garantia de atravessar, as faixas passam a ser meras pinturas alegóricas e de humilhação a quem espera para chegar ao outro lado.


Como quem desejar melhorar essa situação, as autoridades colocam semáforos de pedestres. Entretanto, mais uma vez, a preferência é dada aos automotores. Os semáforos demoram 2, 5 ou 8 minutos para fechar, acumulando grandes quantidades de pessoas. É uma prisão de segurança máxima! Um teste de paciência. Um afronta a prioridade legalmente estabelecida. Um recado nos é dado: a rua é dos carros, saia daqui! Os sinais de pedestres deveriam demorar um tempo ínfimo (para não dizer: “tem que fechar exatamente após o pressionar do botão”). Isso! Tão pequeno que garantisse a travessia imediata do pedestre, e, portanto, sua preferência sobre todos os modais.


A lógica disso é tão clara que chega a ser irrefutável! Ora, se não há faixas o pedestre tem o direito e a preferência de atravessar a rua em qualquer local; se faixas são colocadas, os veículos devem parar assim que um pedestre se aproxima para atravessá-las, mas, por outro lado, o pedestre perde a preferência de atravessar em qualquer ponto; e, se um semáforo é colocado, o pedestre perde a preferência pela terceira vez por ser obrigado a esperá-lo. Então, dessa forma, o modal prioritário perde por consecutivas vezes a preferência.


Claro que todos esses elementos jogam o pedestre para um lado tão oprimido que eles tendem a cometer as mais diversas infrações, já que seguir o correto não é garantia de conforto ou mobilidade justa e sustentável. E então, vem a autoridade de trânsito local (sim, a CTTU) e escreve em seu Twitter que o pedestre deve dar preferência aos automotores.





A cidade está doente e o estado parece não dar um indicativo de que uma bonança vem por aí. Estamos caminhando para uma morte tão certa quanto a dos 250 mil pedestres que morreram atropelados no Brasil de 1996 a 2011.


É hora de mudar! Pedestres e ciclistas, convocamos vocês! Tomem esta cidade! A cidade é sua! A cidade é das pessoas! Libertem-se destes ternos de vidro costurados à parafuso e reclamem diariamente a SUA cidade!


BÔNUS: Na Alemanha, onde a indústria automobilística reina, mas ainda se consegue alguma mobilidade para as pessoas, colocou-se para os pedestres esperarem um joguinho de videogame (com a pessoa que está no outro lado). 

Tentam entreter o pedestre para que ele esqueça que, se estivesse em Copenhague, o semáforo abriria para ele na hora que se aproximassem. Divirta-se e aliene-se.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

A ditadura dos bípedes

Nesta terça-feira, 21 de outubro, a Folha de São Paulo publicou matéria informando sobre a decisão da Prefeitura da Cidade de São Paulo, de reduzir as velocidades dos veículos motorizados no centro: 40km/h para os carros e 50km/h para os ônibus. É gratificante ver a maior cidade do país, onde as mortes no trânsito estavam se tornando algo cultural, beirando o aceitável, uma iniciativa de redução de velocidades.Como podemos ver no quadro abaixo, é um avanço, mas ainda não é o objetivo. No mundo inteiro, milhares de cidades estão determinando Zonas 30 em certas áreas do perímetro urbano, humanizando o trânsito e transformando a cidade em um lugar de convivência. É uma importante etapa na retransformação das cidades em Walkable Cities (cidades caminháveis), característica que foi se perdendo desde o boom da indústria automobilística. Para quem está na base da pirâmide hierárquica do trânsito, - o sempre favorecido motorista -, a grande dificuldade sempre é perceber que base não é topo, e que quando falamos em fazer a cidade um ambiente mais seguro para as pessoas, pensamos principalmente no bípede no seu estado natural: o pedestre.

Mas ao terminar de ler a matéria, me deparei com um comentário que vai além de reacionário. O motorista - nada confirma essa situação, mas o tom de reclamação do comentário é uma boa pista do modal que utiliza - reclama de uma ditadura dos bípedes!


Bom, se o sujeito reclama de uma ditadura de bípedes, na condição de oprimido por esta ditadura, ele não se inclui na definição de bípede. Isto me fez lembrar do ótimo desenho do Pateta Motorista, momento sublime em que a Disney, como de costume, transforma seus animais em bípedes falantes, humanizando-os, só que neste desenho especificamente, ao deixar de ser bípede e ganhar rodas e motor, o personagem Senhor Walker - Senhor Caminhante! - se desumaniza completamente.



Me assusta pensar que alguém que dirige um veículo se esquece que ser motorista, pedestre, ou ciclista, é uma condição momentânea e não intrínseca da pessoa. Introjetam toda a informação de poder e status que é vendida junto aos automóveis, adestrados a pensar que o mundo da liberdade e da mobilidade foi conquistado. Claro... até tirar o carro da concessionária e chegar no engarrafamento mais próximo. Mas o que vemos nesse tipo de comentário vai além de como alguns motoristas se vêem no trânsito, e representa o modo como esse cidadão, portado de um objeto pesado e veloz, vê o mundo à sua volta e as outras pessoas. Ele reduz o homo sapiens à uma condição inferior a do homem motorizado, exatamente o contrário do que diz o CTB (e não o citado CNT no comentário); ele entende o pedestre como alguém menor no trânsito, com menos direitos. O que podemos perceber é uma interpretação do direito de ir e vir de forma estrita e egoísta: o meu ir e vir.

O titular do comentário só enxerga o ir e vir como ir e voltar ao seu destino da forma mais rápida possível. A segurança não é fator considerado em sua análise pois São Paulo, assim como Recife e tantas outras, tem tradicionalmente suas ruas preparadas para o trânsito de carros, de forma que quem está dentro do veículo não percebe a ameaça de toneladas em alta velocidade que este produz. Essa decisão administrativa do poder municipal de diminuir as velocidades é o início de uma preocupação com o a segurança de todas as pessoas que transitam pelas ruas da cidade, seja no asfalto ou na calçada.  

Para analisar a acusação do Senhor Walker paulistano de que estamos vivendo numa Ditadura de Bípedes, podemos descrever inúmeras informações como políticas públicas de mobilidade, gastos com mobilidade, divisão do espaço público, segurança no trânsito e vários outros critérios. Evitando me alongar muito, cito alguns fatos sobre Recife e São Paulo, cidades que conheço um pouco mais que as outras no quesito mobilidade:
- Em Recife, a obra de mobilidade mais cara da história da cidade (R$500 milhões) não é para bípedes,
Via Mangue: maior obra de mobilidade da história
do Recife. Engarrafará no primeiro dia de funcionamento.
tem uma ciclovia que joga o ciclista bípede para fora da cidade, e não contemplará nem mesmo os bípedes entuchados dentro de um curral ambulante sobre rodas (ônibus). Se chama Via Mangue e é para carros.
- Em Recife, São Paulo e na maioria das capitais do país, os carros ocupam 80% do espaço público, transportando menos de 30% das pessoas.
- Em São Paulo, historicamente as mortes por atropelamento de bípedes no trânsito gira em torno de 50%. Ainda não há histórico de atropelamentos causados por bípedes.
- Os semáforos para bípedes demoram para abrir e fecham rapidamente.
- Se há reclamação sobre a qualidade do asfalto, pode ter certeza que sempre a qualidade dele está melhor que a das calçadas.

Dizer que estamos numa ditadura dos bípedes é idiotice do mesmo tamanho que dizer que temos uma ditadura feminista, uma ditadura gay, ou uma ditadura dos negros. São minorias no sentido legal, partes da população com direitos suprimidos ou oprimidos, que estão obtendo pequenas conquistas a duras penas. E ao menor sinal de mudança, de pequenas melhorias conquistadas, são chamados de ditadores.

Não há dúvida de que estamos numa Carrocracia que começa no Legislativo, exigindo quantidade mínima de vagas de automóvel para estabelecimentos comerciais e residências; passa pelo Executivo em todas as esferas, dando subsídios à compra de automóveis, aliviando na fiscalização e na aplicação de multas, fornecendo obras que favorecem o uso do automóvel, dilacerando os espaços públicos destinados aos bípedes para a passagem dos velozes e furiosos; e termina no Judiciário, que trata os crimes de trânsito com brandura e displicência. Com um ambiente completamente favorável ao uso do automóvel, o caminho mais fácil ao bípede é cortar simbolicamente as próprias pernas e se encaixar entre 4 rodas sobre o seu controle. Ironicamente, este mesmo que sofria nas calçadas agora não suporta os ainda bípedes. O mesmo que diz que usa o carro porque o ônibus é ruim e andar de bicicleta é perigoso, mas não aceita perder espaço para faixas exclusivas de ônibus e ciclovias. É apaixonado pelas obras do metrô, porque gera mobilidade para os bípedes sem tirar o mínimo que seja dos 80% de um espaço já conquistado, considerado direito adquirido. É tipicamente o oprimido que conquistou sua parcela de poder e agora oprime.

Pode esperar, amigo. A ditadura dos bípedes vai chegar, é somente uma questão de tempo.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Quem é o pedestre?


É aquele que sai de casa para andar pela sua cidade.
É o ser que se encontra entre o muro de 4 metros do prédio e o asfalto.
É o idoso que atravessa a rua correndo, enfrentando as dores do tempo, para não ser atropelado.
O pedestre é aquela pessoa que você sempre vê atravessando a faixa de pedestres correndo, com medo dos carros.

É aquele que passa no meio da parada de ônibus pois não há mais espaço na calçada.
É todos os cinco, doze ou oitenta subcidadãos que estão esperando por sete minutos uma luz verde acender para poderem atravessar seis faixas de avenida.
É também os cinco, doze ou oitenta cidadãos que não aguentam esperar sete minutos e invadem a avenida para chegar do outro lado. E ouvem as buzinas e freadas demonstrando o desprezo por tal revolta.
O pedestre é aquele que você vê atravessando a rua fora da faixa e acelera para ameaçá-lo, ensiná-lo a obedecer as leis de trânsito construídas apenas para facilitar a sua vida.

É também aquele que corre para atravessar a Praça do Parnamirim, mutilada para caber mais carros à sua volta.
Aquele que corre para atravessar a Domingos Ferreira, que tinha um canteiro central no seu início, e agora tem seis faixas de veículos em alta velocidade.
Aquele que corre para atravessar a Avenida Sul, no Cais José Mariano, enquanto os carros vêm em alta velocidade do viaduto das Cinco Pontas.
Aquele que corre jogando com a própria vida apenas para chegar do outro lado da rua, naquele ponto logo ali na sua frente, tão perto e ao mesmo tempo tão distante.

É aquele que respira a fumaça que você produz.
Que anda na calçada sem sombra porque a árvore foi tirada para você passar.
Aquele que sofre com o calor da cidade porque o asfalto se espalha por todo canto, tirando o verde e acumulando calor. Que sofre com o calor porque tem mais de 1 milhão de ares condicionados móveis jogando frio para dentro dos veículos e calor para a cidade.
Que tem sua roupa molhada e suja porque você passou perto dele, sobre uma poça, sem diminuir a velocidade.
Que tem que subir uma passarela para que você passe sem parar.
Que vê a cada dia seu caminho alterado, piorado, destruído, degradado, dificultado, complicado, pra você passar.

É aquele que vai andar pela cidade sem imaginar que você que está bebendo no bar, consultando no twitter e num aplicativo onde tem blitz, e vai arriscar a vida dele ao fugir da lei.
Aquele que morre porque você pisou demais no acelerador.
Que morre porque o órgão responsável pelo trânsito deixou você pisar demais no acelerador.
É aquele que está numa cadeira de rodas e não consegue acessar a Praça do Arsenal, a Praça do Derby, a Praça Flemming e várias outras praças e esquinas da cidade porque você estacionou seu veículo na frente de uma rampa de acesso para cadeirantes.

É o pedestre, aquele que está a caminho de casa, olha para a direita e vê do lado de dentro de um vidro, vinte pessoas correndo sem se mover, ohando em sua direção, sem percebê-lo. Ele olha para a frente e para trás na calçada e não vê ninguém.
É aquele que se sente inseguro porque a calçada está vazia de gente, enquanto a rua está cheia de veículos.

Prazer em conhecê-lo. Eu sou o pedestre, e não quero estar onde você está. Mas gostaria muito que você estivesse aqui ao meu lado.

Cezar Martins

segunda-feira, 25 de março de 2013

Brincando de Amsterdã


"Um dia histórico para o Recife". Assim o governador Eduardo Campos anunciou hoje, em entrevista, dando o merecido destaque para o primeiro dia de funcionamento das ciclofaixas móveis de lazer em Recife. Um domingo atípico, numa cidade em que o uso do espaço público se restringe a esparsas praças e à praia. Olho da janela do meu apartamento antes de ir conhecer as ciclofaixas e vejo famílias inteiras pedalando, de skate, de patins, patinete; as pessoas aproveitando um espaço novo para curtir a cidade. 

Um Recife Antigo para as pessoas
É importante que todos tenham percebido a grande diferença nas ruas neste domingo histórico de março. Não ganhamos um parque novo, nem um lazer novo. Ganhamos de volta, por algumas horas, a nossa cidade. E retribuímos! Demos a ela a possibilidade de sair da UTI, e mostramos como é fácil fazer isso. Basta encher as ruas de gente! Uma cidade cheia de pessoas é mais segura no trânsito - menos carros circulando -, e também fora dele. Gente na rua é mais segurança para todos! A cidade estava mais viva, com as pessoas aproveitando a estrutura para irem com tranquilidade até o seu destino, para usar os serviços e o comércio em locais próximos à ciclofaixa. Vi o Café Delta do Recife Antigo aberto meio-dia em pleno domingo, um horário que o Recife Antigo não tem tradicionalmente ninguém! Uma família saía da cafeteria, outras pessoas estavam dentro ainda, confirmando que o mesmo estava aberto. Uma lição para todos os estabelecimentos no caminho da ciclofaixa: aproveitem esta demanda reprimida de gente querendo viver a cidade! Estamos brincando de Amsterdã! E descobrimos como isso é bom! Me lembrei do dono da Picanha do Futuro, que ano passado me disse enquanto eu e amigos discutíamos a possibilidade de ciclofaixa na rua do Futuro: "aqui mal tem espaço pra carros. Você quer fechar meu estabelecimento!". Ainda o verei sorrindo com as bicicletas paradas em frente ao seu estabelecimento e o bar cheio.

O ciclista deveria ter prioridade
Para a prefeitura, este foi um grande passo para a humanização da cidade, para a transformação de Recife em uma cidade de verdade, um espaço de convivência, mas a gestão do trânsito da cidade teve algumas feridas expostas. Para legitimar o discurso de que este é um primeiro passo para uma mudança de cultura de mobilidade na cidade, deve-se aproveitar a oportunidade para se educar os motoristas. Em vários momentos os agentes da CTTU paravam os ciclistas para que os carros na mesma via, no mesmo sentido, pudessem converter à esquerda, cortando a ciclofaixa, indo de encontro ao artigo 214 do CTB "Deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado", infração gravíssima. Importante também foi ver a prefeitura reconhecer o perigo das velocidades. Em alguns trechos havia carros da CTTU e placas avisando que a velocidade máxima no dia de ciclofaixa não era mais 60km/h, mas 40km/h. Cabe ao prefeito demonstrar sua preocupação com o alto índice de mortes no trânsito em Recife - já passamos São Paulo faz alguns anos -, e repensar a redução e controle de velocidade na cidade para todos os dias, caso contrário faz parecer que a preocupação maior seria a segurança das pessoas apenas no domingo, para o sucesso do evento. Olhe para a foto abaixo, retire os cones e a placa de 40km/h. Você vê uma rua segura para ciclistas?

Prefeitura reconhece a necessidade de se reduzir a velocidade para a segurança


Para o ciclista do dia-a-dia, este domingo foi especial, mas foi também um pouco assustador. Ao usar uma estrutura tão essencial para a nossa segurança, sentimos a diferença entre o estado de alerta permanente em que pedalamos e a felicidade de fazer o seu caminho de forma tranquila, encontrando as pessoas no meio do caminho, olhando para a cidade. Mas nesta segunda, certamente enfrentarei o trânsito com um pouco mais de medo, depois de ser lembrado como é transitar de forma segura. Ainda no Recife do passado, mas também neste domingo, outro ciclista morreu atropelado no coração da cidade, em plena Avenida Agamenon Magalhães. Um senhor de 72 anos, que ia de Santo Amaro para comprar mercadorias em outro ponto da cidade, e não tinha uma ciclofaixa no seu caminho. A contagem fria de mortos não pára de crescer, batendo na cara do ciclista "acorda! Aqui não é Amsterdã!". Sobre ser um dia histórico para o Recife, só poderemos afirmar quando a mudança de verdade chegar, confirmando que 24 de março de 2013 foi o primeiro passo de uma grande mudança, e não apenas um belo dia a ser lembrado. Pra mim, está tudo muito claro na memória ainda. Acordei nesta segunda-feira com as buzinas impacientes de sempre, e com saudade dos cones e do Recife de ontem.

Cezar Martins

sábado, 16 de março de 2013

Metade Bogotá, metade Los Angeles



Los Angeles, mais vias, mais viadutos: mais engarrafamento


Que Recife chegou ao caos no trânsito não é novidade. Na verdade esse caos é uma realidade antiga, porém notícia nova. Para usuários do transporte público, um caos de ineficiência. Para ciclistas e pedestres, um caos de insegurança. Agora os jornais noticiam o caos para os usuários do carro. E então a pauta das discussões sobre os problemas da cidade se polariza em mobilidade. E com grande prejuízo para as outras pautas necessárias.

Vi certa vez no Blog Acerto de Contas apelidarem Recife de Bagdami: Miami na frente, Bagdá nos fundos. No trânsito de pessoas, estamos entrando na era Bogotangeles: soluções Bogotá com mentalidade Los Angeles, a meca dos carros. Se você é viciado em carros, depende deles, vá conhecer Los Angeles, não vai querer sair de lá! Pensando em mobilidade, buscando soluções para o engarrafamento - sim, pois sem engarrafamento, ninguém pensava em mobilidade - comitivas de políticos e gestores têm ido a Bogotá tentar aprender com os colombianos as soluções para o trânsito das cidades. Mas tenho certeza de que fizeram escala em Los Angeles também. Em TODAS as medidas voltadas para a mobilidade anunciadas pelos gestores municipais, seja na gestão passada, seja na atual, há um bate e assopra na classe média motorizada. A cada pronunciamento dos secretários e outros gestores da Prefeitura e do Governo do Estado, podemos perceber um medo da classe média, receio de que esta apareça na frente da prefeitura com espetos e foices pedindo a cabeça do prefeito. Como se houvesse força de mobilização nesta parte da classe média. Vide MMH, Movimento da Mobilidade das Hilux. Fracasso anunciado.

O que tivemos em Bogotá foi justamente uma inversão de prioridades. A solução da capital colombiana não foi BRT, foi tirar espaço dos carros para BRT. Não foi ciclovias mais calçadas, foi priorizar o dinheiro público para elas em detrimento das vias para automóveis. Veja o ex-prefeito de paletó e bicicleta, comentando sobre isso aos 4min50seg no video Urbanized. 

Já Los Angeles, estive em 2011 nesta cidade para carros e pretendo não mais voltar. Cidade abarrotada de viadutos e vias de seis, oito faixas para carros. Ruas sem ninguém, pelo que pude ver da janela do ônibus entre a ferroviária e o aeroporto. Quis ir do aeroporto para conhecer Hollywood e a única opção viável era alugando um carro. Passei seis horas no aeroporto fazendo nada.

Para reforçar esse meu ponto de vista, resolvi enumerar as principais soluções Bogotá style aplicadas e propostas para Recife, e as respectivas assopradas L.A. style. Há dois tipos de aliviada nas ações da política contra os carros: a pensada pelo governo, quando este deliberadamente toma uma medida pra aliviar a pressão nos motoristas; e a omissão, quando o governo deixa de tomar uma medida mais dura tendo esta oportunidade. Vejamos as medidas anunciadas:

- Corredor de ônibus ou faixa exclusiva na Domingos Ferreira > a prefeitura se diz preocupada com o transporte coletivo, mas já anunciou várias vezes que só coloca faixas exclusivas para ônibus na Av. Domingos Ferreira quando a Via Mangue estiver pronta. Só resolve o problema da população dependente do transporte público quando criar alternativa para os carros. Vejam que estamos falando de quatro novas faixas exclusiva para carros na Via Mangue - já foi anunciado que ônibus não passará por lá - em troca de uma ou duas faixas exclusivas de ônibus na Av. Domingos Ferreira.

- BRT na Agamenon > O BRT vem como a solução mágica para o transporte. Em nome dele, vale tudo. Na justificativa de tirar os sinais da Agamenon, para melhorar a circulação do BRT, vale colocar passarelas no meio da cidade para o pedestre e o ciclista perderem tempo, conforto e segurança no transitar. Seguindo o mesmo mantra BRT, coloca-se quatro viadutos cruzando a Av. Agamenon Magalhães para que os carros não parem. Mas tudo seria resolvido se os BRTs usassem alguma solução tecnológica de controle dos semáforos, por exemplo, fazendo o trânsito de carros pararem para a passagem dos BRTs e dos pedestres. Mais uma vez, temos de um lado os carros, e do outro o transporte público, e os pedestres.

- Retirada de carros estacionados das ruas > Os gestores foram a Bogotá, mas não devem ter falado com Peñalosa, ex-prefeito que disse “estacionamento não é um problema do governo. é um problema privado”. Em Recife, a retirada das vagas da rua virá acompanhada de 17 edifícios garagem, muitos deles localizados em áreas de destino dos carros já hoje. Construídos com dinheiro público. Os motoristas continuarão enchendo as ruas de carros até o trabalho, só terão um trabalho um pouco maior para ir do edifício garagem ao trabalho.

Times Square, NY: antes para os carros, depois para as pessoas.
- Rodízio de veículos > O secretário de mobilidade anunciou nesta quinta-feira (14/03/13) no Fórum sobre Mobilidade Urbana, realizado na Fafire, que a prefeitura estuda a implantação de rodízio de veículos em Recife. Ótima medida paliativa implantada em várias cidades. Mas em Bogotá, além de rodízio, temos no início de fevereiro, o Dia sem Carro. Neste dia, das 6h30 às 19h30, não podem circular veículos particulares, sujeitos à multa e apreensão da carteira de habilitação. Esta medida surgiu depois da reestruturação do transporte público e da construção de ciclovias. Aqui a prefeitura não sinaliza nenhuma medida nesse sentido, e pela atual pisada, não me parece algo planejado para o nosso futuro. Lembrando que o rodízio, aplicado isoladamente, é uma medida que favorece bastante o trânsito de carros, sem grande efeito nos usuários de ônibus, ciclistas e pedestres.

- Bicicletas de aluguel > O sistema tem funcionado no mundo inteiro, mas em cidades como Bruxelas, onde não vieram acompanhadas de medidas restritivas ao uso dos carros, e de estrutura cicloviária, têm se mostrado uma opção ao pedestre, não tem servido de substituição ao carro. Em Bogotá, se priorizou o investimento em calçadas e ciclovias. Há ruas esburacadas para os carros, e ao lado temos calçamento e ciclovias em ótimo estado. Peñalosa afirma que “quando tivermos dinheiro para melhorar a rua para os carros, nós faremos. Mas a prioridade é o pedestre e o ciclista.”

Como podemos ver, a ida dos gestores à capital colombiana os fez aprender soluções de melhoria da cidade para as pessoas, mas todas estão sendo aplicadas, sempre no limite de não forçar ninguém a sair do carro.
A ideia de que tem que melhorar todos os outros modais, sem piorar nada para o carro só funcionaria se os modais não interagissem no trânsito. Ônibus presos no engarrafamento, pedestres esperando 10 minutos o semáforo de uma faixa de pedestres abrir, ciclistas sem estrutura adequada, não são problemas em tubos de ensaio separados, são apenas alguns dos muitos custos sociais impostos pela carrocracia. Há que se resgatar o equilíbrio perdido no uso do espaço público.

As ideias utilizadas em Bogotá combinadas a uma mentalidade Los Angeles style geram soluções meia boca para a mobilidade no Recife, pois não contemplam a realidade de que é necessário tirar espaço e privilégio para os carros, não por uma perversidade, mas para correção da perversidade que foi feita ano a ano na cidade com todos os outros que não utilizam o carro. Estamos todos no mesmo tabuleiro e a melhoria pra valer de todos esses outros modais passa necessariamente pela piora da situação de quem usa carro. Vai doer.

Cezar Martins

sexta-feira, 15 de março de 2013

Aquele caso


"Mas, teve aquele caso que o menino tava todo errado, atravessando a faixa com o semáforo aberto..."
Pronto! Aquele caso virou agora um ponto de referência, lascou. Toda vez que um ciclista for atropelado vão lembrar daquele caso, daquela vez que o cara passou um semáforo e foi arremessado a 20 metros de distância.

Uma pena que só querem crucificar quem nunca teve educação para o trânsito, quem nunca teve uma orientação, quem tem um semáforo que passa 5 minutos fechado para si. Que pena que querem colocar a culpa de um anulando a culpa do outro.

Pena que não vêem que o que mais está se falando por aqui não é a culpa de ninguém, e sim o absurdo de que tenhamos que conviver com velocidades dessas debaixo de nossas fuças. Velocidades muitas vezes legais, porém incompatíveis com a vida em comunidade e com a alta densidade populacional.

Não vêem o perigo e as consequências dessas velocidade, da possibilidade de crianças correndo dos braços das mães e motoristas sem conseguir frear suas máquinas de ferro. Toneladas de ferro levam tempo para frear, e por isso tem-se que reduzir as velocidades máximas ao máximo, para quando um erro de um ou de outro ou de ambos ocorrer não se tornarem mais um d'AQUELES CASOS.

Daniel Valença

segunda-feira, 11 de março de 2013

O ponto de mudança

para a CTTU, com todo o meu amor

Recife, quinta-feira, 7 de março. Um garoto de 16 anos imprudentemente atravessa uma faixa de pedestres em Boa Viagem, sobre sua bicicleta. Ele e vários outros pedestres fazem o mesmo: atravessam a rua com sinal verde para os carros. Todos culpados. Condenados previamente, por sua condição no trânsito. Mas só o garoto paga pelo seu crime. Um crime hediondo: atravessar a rua no sinal verde, sem olhar para os lados. O pagamento foi justíssimo para tal crime: a própria vida. Os outros pedestres saem impunes. Tremenda injustiça. Deveriam morrer todos. Suicidas! Culpados de atravessar a rua feito loucos, irresponsáveis!

Essa lógica perversa tem predominado nos meios de comunicação e nas redes sociais, além de claro nas conversas de corredor. “O ciclista foi imprudente. Ponto final”. Não. NÃO! Não podemos concordar com isso. Isso tem que ser ponto de mudança! “Foi um acidente, uma fatalidade”. Será? Vamos às notícias do fim de semana... Sexta-feira, um dia após o atropelamento do jovem em Boa Viagem, um ciclista experiente está parado no sinal, na Rosa e Silva, uma moto vem por trás dele e o derruba. Fura o sinal e segue em frente. O ciclista cai embaixo do ônibus. Pedestres desesperados batem no ônibus para avisar ao motorista que tem alguém embaixo do ônibus. Por pouco o ciclista não perde as duas pernas. Deveriam gritar “Este não merece morrer! Este não!”. Foi absolvido. “Foi um milagre!”, disse uma pedestre que ajudou a socorrê-lo. Saiu barato. Queimadura de terceiro grau nas duas pernas. Claro, o crime foi menor. Ele apenas se atreveu a se locomover de bicicleta na rua. Um insolente! A namorada do ciclista entra em contato comigo e no meio da conversa, uma frase me faz gelar: “não sei se tenho coragem de pedalar na rua de novo”. Na frente do computador, eu não consigo pensar em motivos para escrever qualquer coisa que a motive. No mesmo dia, sexta-feira, na Imbiribeira, outro ciclista atropelado. E no fim de semana, pedestre atropelado na Estrada do Arraial. Em Boa Viagem, outra morte. Misteriosamente, no trecho inicial da Domingos Ferreira, aparece o desenho em contorno branco de um corpo no chão. Algum pedestre - outro insolente! - se atreveu a atravessar no trecho que tiraram o canteiro central. Veredito: CULPADO! Culpado por enfrentar seis faixas de veículos, colocadas no meio da cidade. Elas são um claro recado para o pedestre: “Saia daqui! Aqui não é o seu lugar!”. Então, será que tantos acontecimentos são fatalidades? Acidentes?

Temos em Recife uma divisão clara e impositiva do espaço para os carros e para as pessoas. Entretanto, mais do que um ordenamento do trânsito, há verdadeiros muros virtuais. As condições de uso do espaço geram uma barreira, um abismo. Consigo visualizar claramente as calçadas estreitas, e entre elas, em vez de asfalto, um precipício de 200 metros. As faixas de pedestre são pontes de madeira podre, com ventos de 60, 80km/h que podem passar a qualquer momento e te jogar para o fundo do abismo. Os semáforos são meras flâmulas que te dão uma precária segurança de que nesse momento os ventos estão calmos, normalmente por apenas 15 segundos. Simplesmente acredite, e corra. Corra pela sua vida! Pode se arriscar na ponte (faixa). E ai de você que tente atravessar a ponte com a flâmula dançando. É abismo na certa. Os ventos não param por nada. Os ciclistas? Rá rá rá! Aviões de papel de seda, loucos que insistem em invadir o espaço que não foi feito pra eles. E não foi MESMO.

Voltando à realidade de nossa Recife carrocrata... Quem dera fossem ventos o que temos rodando a 60, 80km/h pelas ruas! Em vez disso, são 600.000 objetos de 1 tonelada ou mais, verdadeiras navalhas afiadas, passando sempre a centímetros de nossos pescoços. Errou, morreu. Ou errou, matou. “Foi apenas um acidente. Acontece.” Mas acontece mais do que deveria. Nosso nível de aceitação a “acidentes” de trânsito está muito alto. Por ano, em Recife, morrem 15 pessoas por cada 100.000 habitantes no trânsito. Em Amsterdam, esse número é de 1,5. Olhamos para o trabalho da CTTU (Companhia de Trânsito e Transporte Urbano de Recife) e da Secretaria de Mobilidade e o que vemos são informes sobre acidentes e engarrafamentos, proibição de retornos, operação tapa-buracos, acreditando cegamente que a engenharia de tráfego pode resolver todos os problemas. O fluxo de carros é a menina dos olhos da CTTU, não importando sobre que poça de sangue ela transite. Não há nenhuma relação dos órgãos de gestão do trânsito com os dados sobre mortes no trânsito em Recife. Se para cada xxx mil veículos que passem por um bairro, houver apenas um atropelamento, a conta bate para a prefeitura. Aquela pessoa que recebeu a cacetada de uma tonelada de ferro é efeito colateral.

Pois eu declaro então abertamente que a CTTU - e consequentemente a Secretaria de Mobilidade - tem sua grande parcela de responsabilidade com as mortes, os atropelamentos e todos os eventos de trânsito em Recife, não só os engarrafamentos. Estes, por sinal, são no geral culpa de quem coloca o carro na rua todos os dias. A CTTU não tem capacidade de resolver isso que todos esperam que seja sua única função. Órgão nenhum tem. E desafio a CTTU a assumir esse corajoso posicionamento. Gestão do trânsito não  se resume a fazer veículos se moverem mais rapidamente. Assuma sua culpa pelas mortes decorrentes do modelo de mobilidade adotado. Tenha a coragem de trocar o fluxo insano de veículos pelo fluxo seguro de pessoas. E inclua em suas estatísticas, em suas malfadadas metas, a estatística de mortes e atropelamentos no Recife, e a consequente meta de diminuição desses eventos. Porque enquanto a meta for fluxo de veículos motorizados, o órgão está excluindo de início todos os ciclistas e pedestres, além de subvalorizar as 30 a 100 pessoas que estão dentro de um ônibus. Ou a CTTU se torna nosso ponto de mudança, com inúmeras ações pró pessoas que nem vou me preocupar em destrinchar neste texto, ou ela é o ponto final da mobilidade no Recife. Um ponto final para todos nós. E nessa realidade, não vejo utilidade nenhuma para o órgão. Nessa realidade, minha sugestão para a Prefeitura é a implosão do prédio da CTTU e a construção de um cemitério em seu lugar. Vamos precisar.

Cezar Martins
cidadão, às vezes ciclista