sexta-feira, 9 de março de 2018

Faixa Azul do Pina é o bode expiatório perfeito.

É tanta desinformação que não dá pra gente ficar calado. Toda semana desde o início da Faixa Azul (faixa exclusiva de ônibus) do PINA, em fevereiro, os jornais de grande circulação publicam pelo menos duas notícias sobre o engarrafamento na Avenida Antonio de Góes. O trecho parece pequeno, insignificante, mas a Av. Antonio de Góes é o principal ponto de ligação da Zona Sul com o centro da cidade e com a Agamenon Magalhães. A Prefeitura, diga-se de passagem, está até o momento resistindo bravamente, fazendo o seu papel de suportar a pressão da mídia, da população motorizada (minoria na cidade) e pasmem! de uns tempos pra cá até da Câmara de Vereadores (com raras exceções). Não dá pra passar a mão na cabeça do prefeito por sua resistência, afinal, apesar de um discurso lindamente ensaiado com o Secretário de Mobilidade e a Presidente da CTTU, de que a Via Mangue é uma ideia ultrapassada herdada de gestões anteriores - e é mesmo -, não faltam anúncios da prefeitura sobre melhorias na mobilidade do Recife com video da Via Mangue, além dela ter sido fortemente utilizada como cabo eleitoral nas últimas eleições municipais também. A tal prioridade para os ônibus nas avenidas Conselheiro Aguiar e na Domingos Ferreira só veio depois de se abrir mais espaço para os automóveis por cima do mangue, o que demonstra que nunca foi prioridade de verdade. Como resultado da Via Mangue, essa disputa por espaço na Av. Antonio de Góes está mais forte e acirrada do que deveria, pois, além dessa quantidade de automóveis que está na foto disputando espaço público com os ônibus, a Via Mangue vem pela lateral, com suas 4 faixas no túnel, e pressiona por mais tempo semafórico para ela. Na matéria de ontem do JC, está claro isso: 54 segundos de semáforo para 5 faixas de automóveis e uma faixa de ônibus na Antonio de Goes, e 55 segundos de semáforo para a Via Mangue, onde não passa nenhuma linha de ônibus. A via expressa foi concebida assim desde o seu projeto básico. Pode parecer um equivoco citar a falta de ônibus por lá, local sem grande fluxo de pessoas, mas pra quem vem de Piedade, Candeias, Barra de Jangada ou mesmo Setúbal, se tivesse uma linha expressa para o Derby ou para o centro, poderia ser algo bastante atrativo. Um detalhe a mais sobre a Via Mangue podemos ver na eterna afirmação de que "se a prefeitura tivesse feito a ligação do túnel com o Cabanga ou Estelita diretamente por uma alça não teríamos esse problema." Infelizmente não é assim. O problema só estaria transferido mais para a frente. SEMPRE que se dá mais espaço para os carros, mais espaço eles ocupam, mais espaço é necessário para a sua circulação. E isso nunca vai mudar porque no carro as pessoas ocupam muito mais espaço para se locomover do que nos ônibus, a pé ou de bicicleta. Ele pode ser o modal mais confortável, mas é o mais ineficiente no uso do espaço público. Não dá pra ir contra a Física, a Matemática, e principalmente a Lógica.

Voltando à realidade atual, sem ônibus na Via Mangue e sem alça do túnel diretamente para o Cabanga, temos que, toda vez que um ônibus fica parado no semáforo da Antonio de Goes, as 50, 80 pessoas dentro dele, estão dando prioridade para todos os carros da Via Mangue. Então eu chego num ponto interessante, que queria incluir nessa discussão sobre as causas do engarrafamento no Pina. As pessoas reclamam do engarrafamento na Antônio Góes não pelos 55 segundos parados para dar prioridade à Via Mangue, mas por uma faixa de ônibus, que só iria fazer caber, com a sua retirada, uma faixa a mais além das cinco já existentes. A Faixa Azul do Pina é o bode expiatório perfeito para um problema que não foi ela que gerou. Novamente a Lógica, perdão a insistência, mas vou separar o parágrafo...

Os motoristas da Av. Antônio de Góes passam metade do seu tempo de circulação parados para dar a vez aos motoristas da Via Mangue. Os motoristas da Via Mangue passam metade do seu tempo parados para dar prioridade a 5 faixas de motorista na Antônio de Góes e uma faixa de ônibus.

Explico:
- para quem está na Via Mangue, tanto faz ter faixa exclusiva de ônibus ou não na Antônio de Góes. A Antônio de Góes como um todo faz quem está na Via Mangue ficar metade do tempo parado.
- para quem está na Antônio de Góes, só podemos dizer que o fluxo melhoraria 20% com a retirada da faixa (aumentaria de 5 para 6 faixas, aumento de 20% no espaço), se tirássemos também TODOS OS ÔNIBUS!!! Mas não, eles continuarão lá. E ainda devemos considerar que com a piora dos ônibus com a retirada da faixa exclusiva, mais gente debandaria para os carros. Não é esse o argumento utilizado por quem está no carro? "O ônibus é ruim." Logo, se o ônibus piora, mais gente vai para o carro, se o ônibus melhora, mais gente vai para o ônibus. Correto?

Ainda sobre a questão dos tempos dos semáforos, podemos afirmar que o fato de o tempo do semáforo para a Antonio de Góes ser o o mesmo tempo para a Via Mangue demonstra mais uma vez que a prioridade para os ônibus na avenida foi feita pela metade. Apesar dos 94 mil passageiros transportados diariamente em uma faixa, se divide o tempor por igual com a Via Mangue. Mas o problema não começa aí, começa lá atrás, na Conselheiro Aguiar. Qualquer pessoa que ande de ônibus na Conselheiro sabe que eles fluem muito bem por toda a avenida, justamente porque a Conselheiro Aguiar tem prioridade semafórica sobre suas transversais. O problema está no fim da Conselheiro Aguiar, quando está chegando na Antonio de Góes e se divide a prioridade do tempo de semáforo com esta avenida. Nesse momento, todos os ônibus estão parando na Conselheiro Aguiar, se acumulando, para dar prioridade aos automóveis que vêm da Avenida Boa Viagem. Se considerarmos a faixa exclusiva da Antonio de Góes como uma continuação da faixa exclusiva da Av. Conselheiro Aguiar, a verdadeira prioridade para os ônibus seria não somente de espaço, mas também dar prioridade semafórica - aumentar o tempo dos semáforos - não somente para a Antonio de Góes sobre a Via Mangue no semáforo do túnel, mas também dar prioridade para a Conselheiro Aguiar sobre a Antonio de Góes. na ligação entra as duas vias. O fluxo do ônibus ia ser ainda maior, e os motoristas certamente iriam se adaptar a essa nova configuração de semáforos, se redistribuindo entre as três opções: Av. Boa Viagem, Conselheiro Aguiar e Via Mangue. O resultado principal seria o aumento da velocidade média de quem está no ônibus e consequentemente da velocidade média de todos que circulam pelo Pina. Essa prioridade semafórica para o caminho inteiro dos ônibus melhoraria inclusive a situação das linhas da faixa da esquerda da Antonio de Góes, que não podem ir para a Faixa Azul pois entrarão à esquerdana Rua Arquiteto Augusto Reinaldo, depois do túnel, para seguirem para o Shopping RioMar. O tempo a ser colocado para cada via? Quem tem que definir é a CTTU, mas levando em consideração a prioridade para o transporte público. É a oportunidade de provar que esse discurso de que Via Mangue é coisa do passado não é só da boca pra fora.

Não entender a Faixa Azul do Pina como um prolongamento
da Faixa Azul da Av. Conselheiro Aguiar é um grande erro.



Mas afinal, porque insistir tanto em prioridade para o ônibus, se ele é tão ruim? Justamente para melhorá-lo. A gente que passa a vida andando de carro - me incluo - tem a percepção de que a principal demanda para melhorar o transporte público é o ar condicionado. Mas será? Colocar ar condicionado no ônibus que está no engarrafamento só vai aproximá-lo da condição de conforto de quem está no carro: parado no engarrafamento no ar condicionado. Já a faixa exclusiva dá para o ônibus uma vantagem que o carro NUNCA MAIS VAI TER: fluidez. Eu sei que é duro. Muita gente vai vir argumentando com a Via Mangue e outros exemplos, mas todas essas melhorias para a fluidez do automóvel se esgotam. Nas cidades grandes, com mais de 1 milhão de habitantes, ou inseridas numa região metropolitana ainda maior, não tem como resolver o problema da fluidez dos automóveis. Já o ônibus, tem como sua fluidez - além do preço - o seu grande trunfo. A fluidez do ônibus é o maior investimento que pode ser feito no transporte público para que ele tenha uma vantagem sobre o automóvel. Ar condicionado, wifi, conforto, etc, nunca serão vantagem sobre o automóvel. Essa análise faço sobre o aspecto individual, de escolha do modal por cada um. Para a cidade, o carro não traz vantagem nenhum. Nem o IPVA é vantagem, pois não cobre os custos de manutenção das vias e, colocando no papel, quem usa o automóvel custa mais para a cidade do que oferece em troca.

73 pessoas em 5 faixas x 240 pessoas em 1 faixa

"Mas não tem nenhum ônibus na foto!!!! Cadê a fluidez?". Exatamente. Tá aí. Faixa exclusiva de ônibus que funciona bem é que nem trilho de metrô. Quando não tá engarrafado, é justamente quando funciona. O número de usuários transportados (94 mil por dia) por hora é que determina a eficiência da faixa. 

Por fim, o que me assusta no Recife é que somos apenas um grupo minimamente organizado de pessoas minimamente sensatas em redes sociais tentando defender mais prioridade para um transporte público que existe para servir uma grande quantidade de pessoas e tem ainda pouquíssimo espaço. Não é invenção do Recife a prioridade pra o transporte público, é política pública nas maiores e melhores cidades do mundo, e quem defende espaço para os outros modais além do automóvel quer o melhor para o Recife. Então... entro na página da Frente de Luta pelo Transporte Público de Pernambuco, e o foco é somente a questão da tarifa. Certamente, a tarifa é questão importante, senão a principal a ser tratada sobre o transporte público, mas a faixa exclusiva, junto com ciclofaixas e calçadas decentes, são o conjunto de medidas que democratiza o espaço público para toda a população. A ascenção social em busca do automóvel, se as pessoas assim pensam e desejam, é um direito de cada um individualmente, mas coletivamente, a garantia de espaço para os outros modais é a única possibilidade de acesso universal ao direito de locomoção. Já fiz essa crítica à FLTP e renovo, pois é preciso ter mais forças defendendo o espaço dos ônibus na cidade. Se deixar, a parcela motorizada da população domina o discurso, pedindo medidas que imediatamente aliviam o trânsito pontualmente, como viadutos, retirada de semáforos e de faixas exclusivas, mas que com o passar dos anos têm se demostrado paliativos para um problema que só faz aumentar: a priorização e dependência do automóvel. Me pergunto também, no meio dessa grande discussão sobre a Faixa Azul do Pina, onde estão os donos das empresas de ônibus? Quais são seus interesses? Eles defendem a faixa exclusiva? Ou no sistema de pagamento às empresas por usuário transportado, há a visão totalmente equivocada de que quanto mais engarrafado mais gente se transporta por ônibus? Eles não têm consultoria técnica?

Claro que não vou entrar na inocência, na ilusão de que os empresários de ônibus vão nos salvar. O lucro deles está garantido e a inércia, a permanência da situação atual, é sempre mais conveniente para quem resolve os seus problemas com os seus privilégios. Mas a sociedade civil, inerte, esperando as coisas acontecerem, vendo uma discussão sobre algo tão básico como uma faixa exclusiva de ônibus ganhar corpo, isso é bastante preocupante. E sem mobilização, sem informações qualificadas e claras, sem audiência pública sobre a falta de prioridade ao transporte público no Recife, a gente tem que lutar como um exército de formiguinhas pra defender uma faixa exclusiva simples dessas. O que esperar então da gestão sobre a Avenida Norte, com 12% dos usuários de ônibus do Recife, mais de 200 mil pessoas diariamente? Será que esse público enorme vai ver chegar lá algum dia o discurso da prioridade do ônibus, da inversão de prioridades? Sem pressão, pode esquecer.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Usuários não, DEPENDENTES.


Por Cezar Martins
A foto é velha, o salário mínimo é outro, mas a situação é a mesma: precária, cruel e de desvalorização do empregado. Vou então deixar meus 20 centavos aqui sobre a greve dos motoristas e cobradores de ônibus na Região Metropolitana do Recife, porque a gente se envolve nessa luta por uma mobilidade menos desigual, mais democrática, e mesmo a bicicleta sendo meu foco, por toda a sua potencialidade represada pela falta de políticas públicas - isso é assunto pra outro momento -, reconheço o sistema de transporte público como peça fundamental dessa democratização da mobilidade.

Já acho estranho uma porrada de gente que não usa ônibus, nem mesmo esporadicamente, descendo o sarrafo nos motoristas e cobradores, porque isso maltrata e complica a vida do trabalhador que quer chegar no seu trabalho. Incluo nessa lista de revoltados uma boa parte da grande mídia, do âncora ao dono da emissora, que não têm a menor ideia do que é um VEM e de que os créditos são comidos pelo Grande Recife após 180 dias. Com raras exceções, todos os envolvidos pitaqueiros sobre essa questão - jornalistas, juízes, governador, empresários - não sabem nada sobre a dureza da vida de quem usa ônibus ou trabalha dentro deles. A greve causa transtornos? Causa. Mas é preciso reconhecer em que situação estamos nos dias normais para entender porque nos dias de greve a situação é tão desesperadora.

Essa conexão direta de causa e efeito "Motoristas e Cobradores em Greve são culpados pela via crucis dos trabalhadores para chegarem em seus locais de trabalho durante a greve" precisa ser reavaliada. Isso é propagado pela mídia, pela Urbana - sindicato dos empresários das empresas de ônibus -, pelo Consórcio Grande Recife e por todos que não fazem a menor questão de mostrar o lado dos trabalhadores do transporte rodoviário urbano.

Pra quebrar essa conexão direta, chamo atenção para o modo como nossa mobilidade é gerida no dia a dia. Quem gere o sistema não acredita nele. Já ouvi diretamente de gestor municipal de mobilidade e já soube de pensamento semelhante de gestores do Grande Recife, frases no sentido de que ônibus é coisa de pobre. Primeiramente, a forma como isso é dito, confirma o entendimento das gestões de mobilidade municipal e estadual, e do empresariado, de que por ser coisa de pobre, ônibus não deve ter prioridade. Basta ver que entra e sai gestão, mudam-se as caras, mas a Av. Agamenon, a Av. Norte, e várias das perimetrais e arteriais principais da cidade, onde passa a massa de trabalhadores que são transportados diariamente nos ônibus, seguem sem faixa exclusiva de ônibus. Tudo espera uma tal de viabilidade técnica que, a grosso modo, se traduz em "se a gente colocar uma faixa exclusiva de ônibus nessa rua, vai piorar para quem tá de carro?". Isso não é viabilidade técnica, é viabilidade política, e depende somente da coragem de se enfrentar um erro histórico de priorização do automóvel, que até agora só mudou no discurso. Veja, nenhum desses - gestores públicos municipais e estaduais e empresários de empresas de ônibus -, em todos os outros dias do ano sem greve, pensaram em resolver o problema do ônibus, nem mesmo com as faixas exclusivas nas vias principais da cidade, onde o bicho pega de verdade, mas no dia da greve a sua revolta é com os motoristas e cobradores? Óbvio que essa inércia política não é um problema exclusivo dos ônibus. Pra fazer ciclovia, alargar calçada, ou mesmo diminuir o tempo de espera de um semáforo de pedestres, a pergunta é sempre a mesma: vai atrapalhar a circulação de automóveis? Se trata claramente de uma questão de luta por espaço entre classes, e para se evitar o confronto com os atuais donos do espaço público, seguimos na ilusão de que dá pra melhorar um pouco todo resto sem piorar para o automóvel. Fazer isso num sistema viário estressado e absurdamente ocupado é IMPOSSÍVEL.

Porém, estarmos todos parados no trânsito no dia a dia, ou parados na parada de ônibus em dia de greve, não é exatamente a totalidade do problema. Boa parte do nosso problema consiste no fato de que não temos opções, logo, estamos escravizados aos modais que nos levam pra lá e pra cá diariamente. O maior escravizado, infelizmente, é quem DEPENDE do sistema de transporte público, principalmente o usuário de ônibus. Sou um usuário de ônibus esporádico e tenho minhas soluções de classe média - ônibus opcional, ônibus comum fora de horário de pico, uber e táxi quando de ônibus for uma porcaria -, mas boa parte da população é completamente dependente do transporte público. O sistema de transporte público, senhores, ele realmente escraviza. Mas não faz isso sozinho. A cidade vai se construindo de forma completamente desregulada. Por exemplo, tem imóvel vazio no centro da cidade, mas tem gente morando em Paulista e trabalhando no centro da cidade. Tanta casa sem gente e tanta gente sem casa. Isso não é exceção, e uma pessoa dessas que mora a 20km do trabalho acaba achando uma maravilha ter um ônibus pra ir e voltar, quando poderia estar indo a pé se houvesse alguma regulação para estimular o uso de imóveis desocupados no centro como moradia. Mas a dependência não vem somente da distância. Ela vem, como já disse, pela falta de opções. A maior prova disso é a quantidade de gente que está no modal errado, ou seja, desaconselhado para o seu trajeto. Cada um tem seus padrões de conforto, de gastos com mobilidade, de tempo disponível para se locomover, mas a estrutura atual não nos faz escolher a melhor opção, e isso se revela em dias sem greve. Quem é dependente do ônibus acaba ficando travado, em buscas de alternativas viáveis que não estão disponíveis. Dou uns exemplos abaixo, mas não há de forma alguma patrulhamento sobre as escolhas individuais dos modais. Cada um que tenha sua consciência de como sua escolha impacta a coletividade, e consciência de suas possibilidades. A meu ver, o poder público estimula, permite ou torna as pessoas dependentes das escolhas erradas, como quando por exemplo escolhe gastar 580 milhões com uma rodovia sobre o mangue, quando poderia estar investindo em todas as outras formas de modais variadas que o vultoso recurso permitiria. Vejamos os problemas diários, corriqueiros, resultados da dependência modal:
- tem gente indo de carro pra viagens a menos de 6km, deveria estar indo de ônibus, de bicicleta ou mesmo a pé.
- tem gente indo de bicicleta pra distâncias de 10km ou mais, pra fugir do preço do ônibus.
- tem gente indo de ônibus para distâncias pequenas porquê a estrutura para o pedestre é uma porcaria ou de bicicleta não tem estrutura cicloviária.
- tem gente usando ônibus para distâncias gigantes, pagando duas passagens, ou passeando entre terminais tenebrosos pra economizar na passagem, mas que poderia estar fazendo essas viagens em transporte sobre trilhos, seja metrô, trem ou VLT; ou pelo menos com integração temporal - bilhete único -, pra não ter que se lascar nos terminais-currais.
- tem gente gastando quase metade do salário no carro pra fugir do ônibus.
- tem gente indo de moto pra tudo que é canto porquê o engarrafamento os empurra pra isso, quando poderiam estar usando outros modais.
Ou seja, tem muita gente sendo empurrada a escolher as piores opções para o seu trajeto. São piores opções individuais e para a cidade. De forma alguma estou querendo idealizar um Recife, como está construído, sem ônibus e com todo mundo usando as outras opções. O Recife e região metropolitana precisam dos ônibus. Mas certamente, a falta de opções, num cenário com menos de 30% dos ônibus circulando durante a greve, se traduz em paradas lotadas, ônibus lotados, desconforto, insegurança, ineficiência. Se pelo menos boa parte das pessoas tivessem outras opções, o impacto da greve na vida da outra parte de usuários que realmente precisaria do ônibus e somente dele seria bem menos dolorosa. O efeito da greve na vida dos usuários seria menor e o resultado desejado pelos empregados - diminuir o lucro dos empregadores para alcançar os objetivos da paralização, tendo assim força na negociação salarial -, seria alcançado.

No caso dos ônibus ainda, além da questão estrutural, motoristas e cobradores, que trabalham horas num ambiente completamente inóspito, estão pedindo algo muito claro, a gente vê a demanda deles. No outro pólo da questão, temos as empresas de ônibus, fornecendo um serviço público sem transparência. Não sabemos quanto ganham ou quanto gastam, pois a caixa preta das empresas de ônibus permanece lacrada. Amigos mais inteirados da situação, me corrijam, mas nem financeiramente Governo do Estado e Prefeitura estimulam o uso do ônibus na RMR. Há algumas gratuidades específicas, como para estudantes de escola pública do Recife, porém a passagem inteira, a meia de estudante e a meia de idoso são todas pagas pelo usuário. Ou seja, a inteira é calculada já se pagando os descontos dessas outras meias tarifas. Nenhum ente público paga 1 centavo para estimular o uso do ônibus em detrimento do automóvel e da moto, por exemplo.

Então, nesta greve, cogite ter um pouco de solidariedade com motoristas e cobradores, que estão jogados no meio desse campo de batalha, ganhando pouco, em péssimas condições de trabalho e, lembre-se, você poderia estar usando outro modal se tivesse opções. Quem te tirou estas opções não foi nem o motorista nem o cobrador.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A segunda-feira (quase) imóvel de carnaval

A segunda-feira de Carnaval (quase) imóvel.


Passou carnaval. Pra mim foram dois dias em Olinda e dois no Recife, somando-se com a sexta-feira, três dias no Recife. Nesses dias me desloquei para a folia de bicicleta, táxi ou Expresso da Folia e usuário desse arranjo de mobilidade para o carnaval desde o início do Carnaval Multicultural na gestão de João Paulo, posso dizer que já provei do céu ao inferno dessa história de voltar pra casa da folia. Além do que, também trabalho no Recife Antigo desde 2009, metade desse tempo tendo carro, metade me virando pra sair de lá de várias formas: bicicleta, barco+bicicleta, ônibus, táxi, a pé, bikepe, bikepe+ônibus, sempre escolhendo a melhor opção de acordo com o meu destino. Sei alguma coisa do leriado "sair do Recife Antigo". Mas no carnaval a coisa é diferente, no carnaval o bicho pega. Porém, o que tivemos na segunda-feira passada não foi diferente de nenhum dos carnavais desde a criação dos pólos, com os principais deles no Recife Antigo. A gente só não lembra do quanto ruim foi antes porque o carnaval só acontece uma vez por ano, e nossa memória é curta para essas pequenas tragédias casuais. Sempre parece que o desastre de agora foi pior do que o de um ano atrás. Mas não se engane, nada mudou, e é justamente aí que está o erro. O carnaval do Recife foi crescendo ano a ano, principalmente no Recife Antigo, e a gestão da mobilidade no carnaval tem o mesmo medo de mudança que a gestão de mobilidade da cidade o resto do ano. A fórmula permanece sendo estacionamento dentro da ilha, táxi e expresso da folia, ambos entrando no Recife Antigo também. O que rolou na segunda-feira foi espantoso, mas mesmo em dias com shows menores, é sempre difícil voltar pra casa do Recife Antigo, seja pra Zona Sul, Oeste ou Norte da cidade.


Troça Carnavalesca
Voltando Pra Casa P. da Vida
Ora, a gestão atual já pratica desde o seu início o discurso de #cidadedaspessoas e inversão de prioridades, e no carnaval não é diferente. Funcionários e gestores da Secretaria de Mobilidade e CTTU aparecem na TV, em jornais, rádios, internet divulgando as opções fornecidas pela prefeitura pra se chegar nos destinos dos foliões, mas na prática pouco se fez dessa inversão. Logo no carnaval, período onde boa parte das pessoas já internalizou que ir de carro é roubada, quando já há uma propensão a se aceitar mudanças, o que se mudou na cidade para se locomover para o centro da folia foi muito pouco. OK, boa parte do desastre ocorrido na segunda-feira foi resultado da catastrófica ideia da organização do carnaval de colocar Nação Zumbi, Jota Quest e o Rappa para o mesmo dia, em sequência. A Prefeitura anunciou que o esperado para a noite no Recife Antigo era de 150 a 200 mil pessoas, e na verdade tivemos cerca de 300 mil pessoas. Fica lindo nas fotos aéreas e nos vídeos institucionais do carnaval com frevo e voz de locutor orgulhoso pelo maior carnaval do mundo, mas lá embaixo o quadro é bem diferente. Isso exige mais de qualquer esquema de mobilidade montado, mas não é ao acaso, é resultado de decisão de gestão e a responsabilidade deve ser assumida. Relatos de foliões que andaram 3km pra pegar um táxi, ou que voltaram a pé pra casa no Espinheiro, ou em Boa Viagem, não faltam. Depois de uma noite inteira pulando carnaval, vendo show em pé, não é fácil.

Se o erro está em manter tudo igual, o que poderia ser modificado? Antes de mais nada, o que precisa mudar na mentalidade de quem gere o nosso trânsito é que pedestres, bicicleta, ônibus, táxi e carro não são simplesmente opções diferentes. Se tudo se tratasse apenas de opções, deveria ser possível ao evento receber todo mundo de carro, por exemplo. Qualquer um sabe o desastre que isso ia ser. Por isso os meios de locomoção devem ser tratados de forma diferente, por vários motivos, e um deles é a questão do espaço, PRINCIPALMENTE NO CARNAVAL. Ser pedestre de ponta a ponta ou ciclista nessa cidade não é fácil nos outros 361 dias do ano, e no carnaval não seria diferente, mas tem suas vantagens. Não é disponibilizando bicicletário apenas que as pessoas vão pegar a bicicleta e ir para o carnaval, por exemplo.  Numa cidade onde somos excluídos o resto do ano, onde a estrutura não existe, pedalar ou andar durante as festas de Momo é ser marginal a um sistema que não te inclui como opção nunca. É redundante afirmar isso, o marginal é aquele que está fora do sistema, mas isso deve ser dito e repetido com todas as letras no caso da mobilidade, em discussões sobre eficiência da mobilidade, sobre comportamento dos usuários de ônibus, dos ciclistas, dos motoristas. Somos empurrados para a marginalidade constantemente. A vantagem disso é que quando o sistema entra em colapso, como foi na segunda-feira de carnaval no Recife Antigo, se você está fora dele, não sofre com o colapso. É isso que acontece quando a cidade para por causa de alguma obra, por algum protesto, ou porque está tendo algum evento na cidade. Parece que tá tudo parado, mas você olha pela janela do carro ou do ônibus e vê as pessoas andando nas calçadas e ciclistas te ultrapassando no engarrafamento e sumindo no horizonte.

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Na foto, Sabrina Machry chegando de bicicleta no Recife Antigo, na ponte Buarque de Macedo, sorrindo, sambando na cara da Prefeitura que insiste em manter o ciclista marginal ao sistema de mobilidade. E pra quem não estava de bicicleta, andar 2km, 4km, 8km até chegar em casa é o momento singular em que a sua única opção, pra fugir do sistema colapsado, é sair dele, ser marginal a ele. Desiste e vai andando, com o braço esticado pra chamar o táxi que acaba de passar lotado. Então, o que está errado com o sistema de mobilidade do Recife no carnaval?


A Presidente da CTTU, Taciana Ferreira, está certa quando diz que é necessário descentralizar mais. Difícil é pensar em quem na prefeitura vai ter criatividade pra isso ano que vem, caso Geraldo Júlio seja reeleito. No Recife Antigo, tivemos o Pólo Central no Marco Zero, mais o Recbeat, o Pólo do Samba an Rua da Moeda, o palco na Praça do Arsenal, além das inúmeras atrações e blocos pelas ruas, atraindo milhares de pessoas. Enquanto isso, a Rua da Aurora estava lá, esquecida, logo ali, a duas pontes do Marco Zero. O enorme parque Treze de Maio também esteve esquecido no carnaval. Problemas de excesso de barulho com moradores nesses locais poderiam ser resolvidos com horários diferenciados. Ou pelo menos, poderia-se espalhar mais esses mega shows em outros palcos, tirando um pouco do protagonismo do Marco Zero, aliviando a ilha pra outros tipos de foliões e de carnaval, que sempre estiveram nas ruas. É bom lembrar, como já dito por outros colegas sobre essa questão de mega shows, ninguém vem para o carnaval de Pernambuco pra ver show de graça. Eles já fazem parte do nosso carnaval e podem continuar existindo, mas sem essa necessidade de se querer fazer do Marco Zero um LollaPalooza regional gratuito, tendo como preço a se pagar o surgimento de uma multidão, previamente escravizada por um sistema de mobilidade ineficiente, ilhada, sem ter como voltar pra casa. Os melhores - não os maiores - shows que já vi em outros carnavais do Recife foram em palcos de bairro e isso pode ser trabalhado com ótimos artistas mais ligados à nossa cultura. Pra piorar a situação, um evento privado chamado Parador, num terreno que tinha sido prometido pela prefeitura pra ter uma praça em cima, foi aprovado também no Recife Antigo, e o resultado disso foi uma confusão de carro e táxi chegando pela parte sul do Antigo - ponte giratória - a caminho  do estacionamento do Paço Alfândega, além de centenas de táxis formando uma fila enorme.



Sobre o tal sistema de mobilidade para o carnaval, a tal #cidadedaspessoas pode começar a ser descrita pelos estacionamentos do Paço, Prefeitura e TRF - emprestado para a Prefeitura, um equívoco recorrente - disponibilizados para quem quiser ir de carro para uma ilha com centenas de milhares de pessoas. De acordo com o próprio site da prefeitura ( http://www.carnavalrecife.com/servicos/estacionamento-e-translados/ ), em 2015 foram registrados 19278 veículos usando o espaço (incluindo carros e motos), de sexta a terça-feira, uma média de 3856 veículos por dia, o que é muito pouco em quantidade de gente transportada, umas 12 mil pessoas sendo bem generoso. Comparado ao transtorno que isso causa, o espaço que ocupa na Avenida Cais do Apolo, enquanto os táxis estão amontoados na Ponte Buarque de Macedo ao redor da sorridente Sabrina, não me parece um bom negócio. Estamos falando de uma ilha com 4 palcos públicos, 1 privado, vários blocos e troças, 300 mil pessoas, e você ainda coloca pra circular ônibus, táxi e automóvel dentro. Não me parece nada sensato. Se pelo menos a prefeitura cogitasse separar todas essas vagas para idosos e deficientes devidamente identificados, se justificaria mais tão desastrosa opção.

O EXPRESSO DA FOLIA funciona bem, mas não dá conta sozinho de despachar as pessoas para os seus destinos, além de focar somente no público que tem carro ou que mora perto dos shoppings. Os ônibus saem em intervalos curtos e seguem sem grandes problemas para os shoppings, mas ainda assim têm dificuldades para sair do Antigo. Os ônibus com destino aos shoppings da Zona Sul se atrasaram no meio do mar de táxis e carros, tanto para entrar quanto para sair da ilha.

Sobre os TÁXIS, está claro que não são eles que vão resolver o problema da mobilidade no nosso dia a dia, muito menos no carnaval. Não foi por falta de táxi que as pessoas não conseguiram chegar em casa. O táxi funciona como mais uma opção, complementar, um pouco melhor do que o automóvel apenas, e é assim que deve ser encarado. Tratar o táxi como uma opção equivalente ao ônibus deu no que deu: juntamente com os automóveis a caminho dos estacionamentos na ilha, engarrafaram todo o entorno, quando não estavam pegando os desesperados lá na Conde da Boa Vista ou Visconde de Suassuna e não chegavam no Antigo nunca mais. Mas não é por ser complementar que deve ser zoneado como sempre foi. Não dava pra colocar pontos temporários de táxi para o carnaval, onde as pessoas fariam fila pra pegar os táxis? A Prefeitura não tem capacidade de orquestrar um acordo desses com o sindicato de taxistas? Um ponto desses na Praça da República - uma ponte de distância do centro da folia, evitando a confusão na Ponte Buarque de Macedo - para os que voltam para as Zonas Norte e Oeste e outro ponto desses no Cais de Santa Rita, pro taxista deixar alguém na Ponte Giratória, dar a volta e pegar outro passageiro, com um guarda da CTTU organizando. Inaceitável qualquer derrotismo do tipo “não funciona no Recife/Brasil”. No aeroporto funciona em menor escala. Qualquer solução é melhor do que como está! Vou repetir o óbvio: o táxi seria COMPLEMENTAR. Táxi (Uber, ou mesmo automóvel particular) não funciona sem um ótimo sistema de ônibus, com FAIXA EXCLUSIVA. Só falamos tanto de táxi no carnaval porque todas as outras opções não funcionam. Quem quiser que tente se locomover de carro ou de táxi em dia de greve de ônibus, pra comprovar que táxi não funciona só. Boa sorte!

Os ÔNIBUS COMUNS continuam completamente esquecidos no carnaval. Enquanto o Expresso da Folia recebeu destaque da mídia, outros ônibus como o Alto Santa Isabel não não podiam entrar no Recife Antigo, e tem que ser assim mesmo. Mas não tinha nas ruas NADA de informação sobre onde pegá-lo! Por morar perto do Shopping Plaza, voltei de Expresso da Folia e andei até minha casa, mas toda a Zona Oeste, Santo Amaro, Espinheiro, Graças, Aflitos, Apipucos, Torre, Madalena, etc, todos não têm shopping por perto. Paradas de ônibus bem sinalizadas além das pontes, com faixas exclusivas, orientadores de trânsito ensinando as pessoas qual ônibus pegar, ou bons mapas, pelo menos no carnaval, ajudaria bastante.

O BRT, nosso tão divulgado metrô sobre rodas, que tem uma estação NA RUA DA PREFEITURA e outra da Avenida Martins de Barros, teve percursos reduzidos ou mesmo cancelados durante o carnaval. Nosso ônibus com maior capacidade, o garoto propaganda do legado da Copa, foi praticamente um figurante nesse carnaval, graças à ausência de faixas exclusivas e ao grande volume de táxis e veículos comuns rodando livremente por todo o centro, inclusive entrando no Recife Antigo. Não podia ser diferente do resto do ano, o BRT permaneceu no engarrafamento.

Não percebem que está tudo errado desde sempre? Não só na segunda-feira de carnaval, mas hoje também, e na próxima segunda-feira estaremos todos (eu não, sou marginal ao sistema) abraçados no engarrafamento. Vamos parar de ficar analisando o terror da segunda-feira passada como algo esporádico, fica parecendo que no resto do ano, tudo funciona. Eu ultrapasso de bicicleta carros parados no engarrafamento já dentro do Recife Antigo às 18h qualquer dia do ano. Por que no carnaval, com centenas de milhares de pessoas numa única ilha, a gente fica esperando que as coisas funcionem? A gestão é a mesma, os paradigmas a serem rompidos são os mesmos, e eles continuam não sendo rompidos! Tudo continuará como sempre foi. Você vai ver semana que vem.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Mobilidade pré-paga: um sistema que não funciona sozinho

Está na moda bater no automóvel. Especialistas, urbanistas, cicloativistas, pedestres, até políticos e gestores que não fazem nada pra tirar espaço do automóvel perceberam como é in bater no automóvel, mesmo que seja somente no discurso.

Não faltam textos sobre segurança no trânsito, redução de velocidade, impunidade, necessidade de fiscalização, redesenho da cidade, compartilhamento de vias, etc, e isso está TODOS OS DIAS na mídia. Algum amigo seu ciclochato com certeza publicou hoje algum post sobre o fechamento das ruas de Paris para os carros, a favor das ciclovias de São Paulo, reclamando da prefeitura de outra cidade que não faz nada, ou algo sobre o ex-prefeito de Bogotá (Enrique Peñalosa) falando que estacionamento não é um problema público, ou foto de carro estacionado na calçada... aaaaahhhhhh... essa já cansou, não é? Pois bem, tem argumento jurídico, técnico, tem argumento de tudo que é jeito e muita gente que tem carro não experimenta outros modais de jeito nenhum. Por que?

Ok, o carro é confortável, tem ar condicionado, você vai sozinho sem ser incomodado por ninguém, a não ser um ou outro ciclista que aparece na sua frente. É muito cômodo, já que você sai a maioria das vezes da porta de casa até a porta do trabalho. É praticamente sua segunda casa. Mas não é só isso. Mobilidade Pré-Paga. O ônibus e o metrô você paga quando usa, ou no máximo quando carrega o bilhete eletrônico. Pedestre? Paga quase nada além de umas colheres a mais de feijão ou um gasto um
A realidade da mobilidade pré-paga: espaço limitado para cada vez mais usuários
pouco maior do sapato. O ciclista vai nessa linha também, ele paga a bicicleta antes - ou mesmo nem paga usando as de aluguel -, mas o custo é consideravelmente menor que o de um automóvel. Do custo do carro, não tem como você escapar. Mesmo que você parcele, vários dos componentes do custo como valor de entrada, IPVA, licenciamento, seguro, estão lá, ou estarão mensalmente na sua lista de dívidas a pagar. Por isso se torna bastante difícil convencer uma pessoa que tem um carro na garagem a utilizar outro modal. Claro, a escolha de que modal utilizar passa por uma análise de vantagens e desvantagens de todas as variáveis que citei acima, mas está lá, na cabeça do motorista, a informação "já está tudo pago", "trabalhei muito na vida pra poder andar de carro, paguei por isso", apesar de não estar  tudo pago já, pois os custos do uso como desgastes das peças, estacionamento e combustível são pagos normalmente durante o uso diário. Então, como dizer pra alguém que já tem um carro que táxi é mais barato para percursos diários abaixo de 17km, se ele já pagou pelo carro? Como dizer para algúem que tem um plano pré-pago caro que ele deve deixar seus créditos na garagem e fazer um pós-pago?
Existem todos os motivos na escolha do modal que você já leu em vários posts deste e de outros blogs como custo, tempo, conforto, status, segurança, mas também não é só isso. Existe uma variável no fator custo que vai além do quanto se paga: é QUANDO se paga. E nesse quesito especificamente, o automóvel é um modal que se encontra na categoria

Isso tudo é tão verdade que quem tem um carro e começa a pedalar, e pedalar cada vez mais, o faz porque alguma vantagem preponderante da bicicleta, normalmente o tempo, começou a fazer pressão na balança contra esse fator custo pré-pago. O novo usuário da bicicleta começa a se perguntar se deve ou não vender o carro, mas só o faz quando consegue calcular que realmente tem como se virar com todos os outros modais de forma mais barata e não tão mais complicada do que com o carro. Começa a ficar sem sentido ter uma modal pré-pago na garagem pra não usar, enquanto você está usando cada vez mais outros modais pós pagos mais baratos. Essa pressão pelo que você já pagou é grande, e normalmente a decisão de vender o carro pra não comprar outro e partir para a mobilidade pós paga passa por um período de análise das variáveis, cálculos. Se consulta outros amigos que já tinham feito a mudança, ouve-se tudo, mas ainda com uma certa desconfiança. A ficha só cai mesmo quando você vende o carro e o dinheiro entra na conta. Depois outros terão a mesma dificuldade e irãote fazer várias perguntas, por algumas ou várias semanas, até tomarem a mesma decisão.

Pra facilitar o entendimento desse conceito de mobilidade pré-paga, vamos comparar com um pré-pago e pós pago de telefonia/internet, claro que com algumas adaptações. Se você considerar o fator preço, e pensar que você tem um pré-pago de 30 mil reais ou mais na garagem, por quê você usaria um pós pago de 150 reais no mês? Você já pagou os 30 mil, qualquer 3 reais que você pagar a mais para ir de ônibus não faz sentido. A única coisa que te compeliria a fazer isso é se o pré-pago parar de funcionar a contento, que é o que vem acontecendo com as grandes cidades, lotadas de usuários do
Mobilidade pré-paga: aguardando o download
sistema pré-pago. Somente com o colapso desse sistema a mobilidade urbana começou a ser discutida fora dos círculos de especialistas. Se o pré-pago funciona meia boca (os dados engarrafam, mas ainda assim chegam), você segue escravizado ao que já pagou pelo plano. Às vezes você reclama, vem o provedor do serviço (o prefeito ou o governador) e aumenta a capacidade de tráfego de dados (alarga a via, coloca um viaduto pra diminuir o congestionamento), e você sente que melhorou um pouco, mas não param de aparecer novos usuários de pré-pago, já que o pós pago não é bom. Todos querem trafegar por aquela via de maior capacidade, evitar sinais, como várias lebres gordas, milhões delas tentando correr juntas, uma impossibilidade completa, enquanto a tartaruga vai passando entre as lebres com sua mobilidade pós paga (bicicleta ou ônibus na faixa exclusiva), mas você insiste em ser uma lebre, você já pagou caro por esse privilégio.

Outra característica importante da mobilidade pós paga é a multiplicidade de opções que você tem, ao contrário da pré-paga, essa que você tem na garagem. Quem tá nos planos pós pagos usa a opção que lhe convém para cada caso: bicicleta, ônibus, trem, metrô, caminhar, ou mesmo paga um pouco mais e subloca o pré-pago de alguém se necessário (Táxi, Uber ou serviços de aluguel de automóvel), o que sai bem mais barato do que pagar dezenas de milhares de reais para se escravizar no pré-pago. Esse é um trunfo da mobilidade pós paga que a pré-paga nunca vai ter. É uma vantagem sem comparação para as pessoas que optaram por esse tipo de mobilidade, mas acaba sendo uma vantagem para a cidade também, pois essas pessoas vão se adaptar às variações do funcionamento de cada modal diariamente. Choveu, não quer pedalar na chuva apesar das soluções existentes? Vai de ônibus ou táxi. Greve de ônibus, horário de pico, busão lotado? Tem ciclovia, pega uma bicicleta de aluguel ou a sua empoeirada da garagem e vai. Metrô quebrou? Há todas essas outras opções. É nesse ponto que se perde qualquer discurso que queira minimizar a importância de um modal pós pago em detrimento de outro. "Tem que investir primeiro nos ônibus" ou "não se deve fazer ciclovia antes de se corrigir as calçadas" são geralmente discursos manipuladores que objetivam colocar um modal pós pago contra o outro, o que não tem o menor sentido, ou são discursos realmente inocentes de quem não tem uma visão sistêmica da mobilidade pós paga. É necessário investir em todos os pós pagos, pois há pessoas atualmente no pré-pago que têm maior propensão a se adaptarem a pós pagos diferentes, em situações diferentes. As opções têm que existir todas ao mesmo tempo, e se completam. Essa independência de um modal específico é fundamental para o bom funcionamento do sistema pós pago de mobilidade.
Times Square em Nova Iorque: alterada de pré-pago para pós pago. Redução do engarrafamento na cidade.
Mas ok, você pode achar tudo isso uma grande idiotice. Você quer continuar pagando uma grana massa pra ter o privilégio de ter o pré-pago. É um direito seu, uma liberdade conquistada.  Tudo bem, a mobilidade pré-paga não precisa acabar, ela pode continuar existindo por um bom tempo, ninguém está querendo forçar as pessoas a mudarem para o pós pago. Apesar de ela ser muito mais cara que as opções pós pagas, as pessoas insistem em continuar nela porquê a mobilidade pós paga, mesmo sendo mais barata e tendo capacidade de atender muito mais gente, não satisfaz a todos. A questão é que a largura de banda do pré-pago, o espaço para circulação de dados (ou de automóveis) é limitado, não tem muito mais o que inventar.  Já imaginou todo mundo com plano de internet pré-pago de alta velocidade baixando ao mesmo tempo filmes de altíssima resolução? O resultado: ninguém consegue baixar o filme. Mas se você diminui a velocidade de todos os pré-pagos (nas Marginais), ou dá um pouco da largura de banda para o pós pago (faixas exclusivas de ônibus, ciclovias, calçadas), e com isso dá uma melhorada nas condições para os pós pagos entrarem nas redes sociais, checarem e-mail, enviarem texto por whatsapp, eles vão gastar seu tempo fazendo essas outras coisas que demandam menos a internet (a cidade) do que ver filme de altíssima resolução (andar de carro) o tempo inteiro, e então vai melhorar pra todo mundo. A gente precisa justamente dar condições das pessoas mudarem para o pós pago para experimentarem estes outros usos. dar vantagens para que as pessoas mudem de plano, e isso fará certamente sobrar mais espaço para o pré-pago automóvel. Não há cidade no mundo que tenha conseguido melhorar a circulação de dados (pessoas) no pré-pago sem estimular as pessoas a mudarem para o pós pago (todo o resto). Toda vez que um motorista invade uma faixa exclusiva de ônibus, estaciona na ciclovia, dá um fino no ciclista, estaciona na calçada, ou reclama de melhorias para o pós pago, ele está convidando os usuários de pós pago a voltarem para o pré-pago. De vez em quando surge o discurso em defesa do maravilhoso metrô, que é a solução dos sonhos dos pré-pagos. Eles chegam a dizer que deixariam de usar seus planos pré-pagos para usarem o pós pago metrô. Mas na real, o principal motivo de defesa do metrô é o fato de ser um sistema pós pago que não tira um pedaço da largura de banda do pré-pago. É caro, demora a ser feito - vide metrô de São Paulo, a cidade mais rica do país - e nunca vai conseguir atender todos os usos que os pós pagos precisam. Várias cidades grandes têm metrôs gigantescos e estão investindo em outras soluções pós pagas, pois sabem que o metrô não resolve tudo.

Então, meu amigo, a solução pra teu plano privilegiado, cheio de confortos e facilidades, voltar a funcionar, é fazer com que os outros planos funcionem melhor, e pra fazer isso, muitas vezes é necessário doar um pequeno pedaço do espaço destinado ao pré-pago, já que não há como se criar novos espaços sempre. Afinal, você sabe que o grande problema do teu plano é excesso de usuários, tanto que de madrugada, com vários usuários de pré-pago dormindo, ele funciona perfeitamente e com sobra (igual a maioria das prestadoras de acesso à internet hehehe). Se o pré-pago te oferece um conforto que você já pagou e não quer abrir mão, ou o pós pago não é suficientemente atraente para você mudar de plano, isso não é uma realidade somente pra você, mas pra todo mundo que está no pré-pago, em graus diferentes de adaptabilidade à mobilidade pós paga. E se uma medida que melhorou o serviço pós pago está te incomodando, lembra que ela vai puxar alguns usuários pra lá, comemore! Afinal, se você começar a reclamar e tudo do lado de lá voltar a piorar, pode ter certeza, esse usuário que anteriormente tinha trocado de plano vai voltar pro pré-pago, pra dividir espaço contigo, e não tem acelerador (de internet) que dê jeito, vai ficar todo mundo parado olhando pra barra vermelha do Youtube andando lentamente, demorando duas horas pra carregar um curtametragem de terror na qualidade máxima.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Ben Affleck atropela e mata Jennifer Garner!


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Desde esta quarta, não se fala em outra coisa além da suposta colisão entre Gisele Bündchen e Tom Brady. De acordo com a maior parte da grande mídia, o atropelamento teria ocorrido por culpa de Jennifer Garner, que juntamente com a babá Christine Ouzonian, furou um semáforo na frente do motorista e marido Ben Affleck.

Não contente em ter pedalado no meio da pista com sua bicicleta diante de Ben Affleck enquanto este dirigia inocentemente seu automóvel em julho, a babá se jogou então na frente do automóvel de Tom Brady, enquanto Gisele atravessava a via, o que teria resultado na colisão com sua SUV que vinha sendo tranquilamente conduzida a 70km/h.

O que todos esses veículos - de comunicação - parecem ter esquecido é que Ben Affleck e Tom Brady são MOTORISTAS HABILITADOS, devidamente conhecedores das normas de trânsito. Por isso o Cicloação resolveu fazer o seu próprio título:


“Ben Affleck atropela e mata Jennifer Garner”


Até quando os ciclistas sempre serão vistos como ardilosos e os motoristas como perfeitos inocentes?

A narrativa descrita diariamente nos jornais é quase sempre a mesma: o motorista tem um comportamento exemplar, como nos belos comerciais de automóveis. De repente, passa um pedestre ou um ciclista na sua frente, que o impede de seguir o seu caminho natural, seduzindo o motorista a atropelá-lo.

A culpa é sempre do ciclista, porque “o trânsito e os motoristas são assim mesmo”, a rua foi feita pra eles. E ainda sobra para o prefeito, culpado por estimular pedestres e  ciclistas a se jogarem na rua e  consequentemente na frente dos carros.

O motorista não é responsabilizado pela colisão, como se não tivesse o poder de evitá-la. Até quando?!

Nem está claro, ainda, se Gisele e Tom Brady colidiram de fato. A Page Six revelou, inclusive, que vários pedestres atravessaram a rua enquanto Brady dirigia no ápice de sua inocência. Nenhum foi atingido, o que dilui as certezas sobre a existência de uma colisão.

O que dá para ter certeza é que o jornalismo é carrocrata, sempre defensor do motorista, e precisa melhorar.

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Há vários textos na web comparando a insegurança que os ciclistas vivem em relação à uma sociedade do automóvel com o mundo machista que as mulheres vivem. Percebemos a clareza dessa situação quando verificamos que nas cidades brasileiras, construídas para o automóvel e com o machismo presente nas ruas, o percentual de mulheres é de cerca de 50%, mas o percentual de mulheres pedalando ainda é baixo, menos de 10% onde não há estrutura cicloviária e segurança. Nas ruas, elas são pressionadas não só pela carrocracia, mas pelo machismo presente nas ameaças, nos “elogios” machistas, no medo da violação do seu próprio corpo.

Resolvemos então usar essa comparação entre ser ciclista e ser mulher, aplicando esta comparação nesse curto e ótimo texto do Brasil Post sobre a excelente postagem do Think Olga parodiando o senso comum de que a babá foi culpada pela separação.

Nesse mundo machista e carrocrata, com forte relação inclusive entre o machismo e a carrocracia, a bicicleta é mais um instrumento de empoderamento da mulher. E comemoramos cada mulher que encontramos no caminho pedalando. A cidade é delas, e elas têm um poder enorme para transformar a cidade para melhor.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Sentando no selim

A bicicleta foi e sempre será um instrumento de liberdade para a mulher. Estudos comprovam que cidades mais seguras para pedalar e menos opressoras, tanto no sentido da segurança no trânsito como do machismo (se você é mulher, sabe o quanto é difícil pedalar e ficar ouvindo cantadas machistas o tempo inteiro), têm mais mulheres nas ruas pedalando.

Esse belíssimo texto da revista Bone Shaker nº 14 fala sobre isso de um jeito tão legal que traduzimos pra publicar aqui no Cicloação. Por sinal, fica a dica: a revista Bone Shaker é das melhores que existem quando o assunto é bicicleta. Vende pela internet e chega no Brasil!

Curta o texto. E que tenhamos cada vez mais e mais mulheres pedalando!

Sentando no selim

Não posso deixar de sorrir quando eu me vejo inclinada sobre a desgastada e enferrujada bicicleta, segurando a ferramenta com os meus dedos doloridos e sujos de óleo. Três semana atrás, meu pai tinha ajeitado minha bicicleta - levantou o selim, consertou meu dínamo e ajustou meus freios. E agora, enquanto eu ajudo minha amiga iraniana a baixar seu selim, dou uma olhada na corrente avermelhada, me lembro de lhe dar minhas, agora redundantes, luzes traseiras e checo novamente se seus freios dianteiros realmente funcionam.
O pino está finalmente apertado. Dou um passo atrás e observo assustada minha amiga tentar (e não conseguir) passar a perna por cima do seu selim. Algo me diz que a sua minissaia não é o problema.
"Você já teve uma bicicleta?"- pergunto-lhe hesitante.
"No Irã?" - ela me olha. "A gente costumava pedalar nos parques quando criança, mas, para as mulheres, é proibido pedalar em público".
Minha amiga tem 28 anos. Eu me pergunto quando ela deixou de ser criança, mas engulo de volta a pergunta. Em vez disso, pego minha bicicleta e lhe mostro como subir e descer facilmente da magrela, mesmo de saia. A máxima "como andar de bicicleta" me ocorre. Claramente, fazer isso de verdade não é a mesma coisa. Mas então ela tenta e, balançando como uma criança de dez anos usando a bicicleta da irmã mais velha, adoravelmente confiante na sua própria inexperiência. Eu cuido dela com certo orgulho e, para surpresa dos fumantes agrupados ali perto, começo uma corridinha, segurando-a e mantendo seu equilíbrio enquanto ela pedala, à semelhança do que meu pai fez quase vinte anos atrás, seguindo a minha bicicleta de princesa decorada com fitinhas coloridas.
Ficamos ali por pelo menos meia hora, rindo alegres e repetindo o processo do início, enquanto eu lhe explicava o que são as marchas do câmbio, como funciona um dínamo e por que a luz dela não ligava automaticamente.
Mais tarde, pedalo para casa mais devagar do que de costume. A falta de liberdade que minha amiga deixou pra trás quando veio estudar na Europa sempre foi algo abstrato para mim. Tentava não julgar uma cultura sobre a qual conhecia muito pouco. Mas num espasmo assustado, percebi que, se fosse eu, teria tido meus livros e minha bicicleta tirados de mim. Eu nunca tinha questionado as pequenas liberdades que minha bicicleta e meus companheiros alforges me permitiram, seja liberdade social ou econômica. Minhas duas rodas me levaram a festas quando adolescente, me carregaram pela cidade quando eu estava sem grana e levaram-me aos vários empregos de férias de verão que tive.
Durante o verão, milhares de nós, fomos inspiradas pela luta de uma garota pela liberdade quando assistimos ao filme saudita Wadjda. Enquanto escrevo, mulheres no Egito estão protestando pelo direito de pedalar sem serem sexualmente assediadas. É a campanha "Nós Vamos Pedalar". A invenção da bicicleta trouxe um importante instrumento para o feminismo ocidental: de repente, era possível às mulheres de classe média se locomover pela cidade, por si mesmas - roupas femininas menos limitadoras se tornaram necessárias e  aceitáveis.
Pedalar é uma das mais simples liberdades que existem. Tão simples que nós frequentemente nos esquecemos dela. Só que para usufruí-la nós precisamos antes ser capazes de subir na bicicleta.



terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Cuidado com o canto da sereia!

O ciclista que não tira os olhos da sereia.
De vez em quando a indústria automobilística parece estender uma mão para o resto do mundo. Uma bondade sem tamanho, dá gosto de ver. Mas muito cuidado com o que se vê! Truques mirabolantes do mundo capitalista - conhecido também como publicidade - estão aí para te seduzir. A FIAT lançou esta semana a campanha do Novo Punto. E o personagem principal do anúncio é...??? O Novo Punto, claro.


Nunca se viu tanto no país a bicicleta na mídia como opção de mobilidade. O ciclista é constantemente colocado como desrespeitador das leis, como alguém que se arrisca, um aventureiro, um outsider, um hipster. O ataque é constante. Dificilmente vemos o ciclista em reportagens como alguém que fez uma escolha melhor para a cidade, que deve ser valorizado, incluído no trânsito. Ele é posto apenas como uma opção. Com a indústria automobilística - que não quer largar o o$$o -, não é diferente. Além do óbvio de em todas as propagandas de carros, pordemos ver um motorista feliz circulando por uma cidade sem nenhum engarrafamento, ou até mesmo sem nenhum outro carro no seu caminho, dificilmente encontramos bicicletas rodando nesses comerciais. A própria FIAT tem no seu histórico exemplos nada amigáveis com os ciclistas, bem antes desse anúncio  no melhor estilo o-ciclista-quer-ter-um-FIAT. Veja que caminho ela já tomou em um anúncio do dos anos 80/90.


Pra completar, mais recentemente, em 2014, a polêmica campanha dos vacilões no trânsito, que coloca pedestre, ciclista, motorista, todos como vacilões, quando na verdade o grande vacilo é da montadora, em enquadrar crimes de trânsito, as infrações cometidas por quem dirige automóveis de 1 tonelada ou mais na cidade, como vacilos, no mesmo patamar dos vacilos de ciclista e pedestre. Ainda estamos longe do patamar dos países onde os números de mortes no trânsito - que é o que realmente interessa! -, são até 20x menores que no Brasil. O principal motivo disso é o atraso do executivo e do judiciário em se adaptarem e aplicarem o CTB do modo correto, do modo mais funcional para este ambiente tão plural que é o trânsito. Temos pessoas andando a 6km/h, ciclistas a 20km/h, carros a 40, 60, 80km/h no ambiente urbano. Enormes e pesados ônibus também em altas velocidades. A única forma disso se traduzir em um sistema funcional é a aplicação integral do princípio "o maior protege o menor". Voltando à nossa amada Fiat... Veja a campanha do vacilão para o pedestre, esse cara que corresponde historicamente a entre 20% e 30% das mortes no trânsito e tem semáforos de 7 minutos no seu caminho. Esse cara atravessa fora da faixa, ou com o semáforo fechado, e é chamado de vacilão. Os motoristas em sua maioria mal percebem o Pereira esperando E-TER-NA-MEN-TE para atravessar na faixa, ou muitas vezes num cruzamento sem faixa. Mas ele é vacilão, isso é o que importa, segundo a FIAT.


Esses três videos são estratégias diferentes claras, e contam um pouco da história da relação da indústria automobilística com a bicicleta. Primeiro, a ridicularização (o video do motorista que dá ré para o ciclista cair, final do século XX), depois a estratégia do todos somos iguais no trânsito, repetida como uma mantra por todos os cantos das redes sociais, debates, discussões, campanhas governamentais. Essa fase, como já dissemos, foi radicalmente superada nos países mais avançados em humanização do trânsito. E agora entramos na terceira fase - pelo menos na FIAT -, onde se busca uma motorização dos consumidores, mesmo que não utilizem o carro. "Um carro inovador, pra quem tem muita personalidade". A personalidade, de acordo com o anúncio, é andar de bicicleta e ter um carro na garagem. No final do video, uma alisada no capô, demonstrando o velho carinho de sempre pelo automóvel. Esse anúncio é o canto da sereia. Não há dúvida! A intenção da montadora é trazer você de volta para o automóvel, custe o que custar, mesmo que isso te custe a perda de toda a liberdade financeira que a bicicleta te proporcionou. Pode parecer para muitos um sinal de paz, da possibilidade de convivência entre os dois modais na vida de um mesmo consumidor, mas essa realidade é bem difícil de se implementar em países onde a distribuição de renda é baixa e a mobilidade segue um modelo rodoviarista, excludente, de meritocracia no trânsito no melhor estilo "eu melhorei de vida pra ter meu carro, mereci isso". O Brasil tinha em 2011 uma taxa de motorização de 249 automóveis por 1000 habitantes. Nos Estados Unidos, são 809. Na Holanda, 528! Pode parecer que temos muito o que avançar em motorização, mas há uma grande diferença entre nós e a Holanda, como exemplo mais extremo. Como num país repleto de bicicletas as pessoas têm mais do dobro de carros que nós? Lá praticamente não há engarrafamentos e a taxa de morte no trânsito de Amsterdam é de 1,5/100.000 habitantes, enquanto no Recife esse número é mais de 20 vezes maior, e o engarrafamento....... A resposta é justamente  a operacionalização de um trânsito onde o motorista tem muita responsabilidade, pouco espaço, e muito controle (lê-se fiscalização, ou o que muitos chamam de indústria de multas, o que é uma grande piada). Encher o brasileiro de carros sem uma gestão decente de trânsito é o que temos de realidade hoje: mortes, engarrafamento, perda de tempo e de saúde. Difícil imaginar com o dobro de automóveis nas ruas!

Normalmente as pessoas de renda familiar média ou baixa por aqui gastam pelo menos 20% do seu orçamento mensal para manter um carro na garagem. O custo estimado é de pelo menos R$1100,00 por mês, incluindo tudo que você sempre esquece quando abastece o tanque. Este consumidor, que investe tanto da sua renda num automóvel, não vai abrir mão de utilizá-lo em terra onde o seu uso é estimulado, exageradamente associado a status, e onde o espaço é muito. Se não é o bastante, é porque a implantação de rodovias nunca vai ter dinheiro e espaço suficiente para acompanhar o aumento da frota. Não adianta buscar exemplos fora da curva de pessoas com carro e que pedalam ao trabalho, eles existem principalmente na classe média alta, mas o cenário do país está aí: no Recife, volta às aulas, 250 mil carros a mais circulam diariamente nas ruas, independente de custo, tempo, estresse, ou qualquer outro fator. E as garagens dos prédios lotadas de bicicletas, mal cabendo nas garagens e bicicletários. Sem praticamente nenhuma estrutura cicloviária nem políticas urbanas de desestímulo ao automóvel, ninguém (ou quase ninguém) que gaste mais de mil reais por mês num automóvel vai se enveredar no uso da bicicleta. A cereja do bolo é imaginar se a FIAT sabe disso, se não está nem aí e quer simplesmente atrair de volta o ciclista para dentro do automóvel a qualquer custo.

Apesar de o cenário ainda ser bastante favorável ao automóvel, parecemos estar num ponto de mudança de direção, não só em terras tupiniquins, mas em países que resistiram por anos às vantagens da bicicleta. A FIAT está certa em se preocupar. Em casa, na Itália, se vendeu mais bicicletas que carros em 2012, depois de 48 anos. O movimento não tem volta e a realidade, a qualidade e quantidade de informações estão a favor da bicicleta, as pessoas só precisam se acostumar com a ideia. O avanço é inevitável, e o ciclista que enfrenta o trânsito selvagem de cidades mal preparadas está mais para um vanguardista do que um outsider, seja o classe média que se jogou na rua de saco cheio do trânsito, ou o porteiro que muito antes dos ciclistas de classe média sempre foi de bicicleta ao trabalho pra economizar a passagem do ônibus, sempre invisível para o resto do trânsito. O ciclista não quer ser herói nem ser chamado de senhor certinho ou paladino da justiça, mas deseja segurança e conforto pra chegar no seu destino, e está se acostumando a lutar por isso. Não tem canto da sereia que mude esse cenário!



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